
A CÂMARA ARDENTE DE JUBAL, FILHO DE LAMEQUE
Ao longo de sua provecta existência, Jubal dedicara-se à composição de versos e canções. Filho de um músico e portador do nome bíblico atribuído ao hipotético criador da arte musical, exerceu o ofício de bancário, mas dedicou toda a sua vida à confecção de obras musicais que, aos poucos, caducaram nas tertúlias dominicais com os amigos após as missas.
Durante sessenta anos, a indesejada das gentes foi subtraindo os membros do Clube do Choro que haviam fundado nos tempos idos da juventude. Ninguém descobrira o compositor, tampouco o poeta que, admirando a precocidade de Rimbaud, escrevera uma infinidade de poemas de tez cemiterial — versos soturnos da adolescência e da juventude, quando lia vorazmente Álvares de Azevedo e Edgar Allan Poe.
Seu pai, Lameque, chorão virtuoso no pinho de um violão de sete cordas, o iniciara nesses mistérios, e Jubal aperfeiçoara o talento ao longo da vida. Naquela manhã em que familiares e amigos velavam seu corpo em câmara ardente, seu neto — jovem de dezenove anos — submeteria aos pais um singular desejo: queria realizar a leitura dramática dos versos do saudoso avô.
Todos sabiam do caderno amarelecido pela voracidade do tempo, que repousava na pequena biblioteca de Seu Jubal; nenhum dos descendentes, porém, preocupara-se em enviar os manuscritos ao prelo, tampouco o autor, que preferia que seus escritos permanecessem no anonimato.
Tubalcaim, o neto, pensava diferentemente. Desejava incorporar um recital como parte constitutiva dos ritos fúnebres: enquanto se rezava o santo terço, o grupo de choro contratado pela família — para cumprir o último desejo do de cujus — apresentaria um acervo de clássicos do gênero, passeando pelas paisagens sonoras de Joaquim Callado, Pixinguinha, Ernesto Nazareth e Jacob do Bandolim.
A câmara ardente fora instalada na Casa de Cultura Professor João Silveira. O corpo de Jubal repousava entre coroas de flores artificiais, velas que estalavam devagar e um cheiro de cravo que invadia os bancos de madeira. O conjunto de choro contratado pela família — para atender ao último desejo do de cujus — afinava bandolim, cavaquinho e pandeiro em silêncio respeitoso.
Foi Tubalcaim, o neto de dezenove anos, quem encontrou o caderno. Quando o abriu, sentiu como se estivesse diante do diário de um desconhecido que, no entanto, carregava o mesmo sangue. Era uma obra inteira — não um monte de rascunhos, mas um livro: Visões Cemiteriais, O Puteiro das Nereidas, e outros cantos dispersos. O jovem não hesitou. Aproximou-se dos pais e comunicou:
— Eu vou ler os poemas do vovô no velório.
Um silêncio pesado o cercou. Mas ninguém negou. Era Jubal, afinal. Era sua voz. O grupo de choro fez silêncio total quando Tubalcaim se pôs ao lado do caixão, abriu o caderno na primeira página e recitou um pequeno fragmento de Visões Cemiteriais:
Despontam, na noite ancestral, os atabaques. / Lodosa peanha eleva os rostos consumidos. / Rosbifes de mortos, corroídos pela foice. / A vida do estrume ascende em vapores rígidos. / Jardins carniceiros florescem do humano lixo. / Vespeiros e musgos proliferam entre ossos. / Morcegos pastoreiam sombras sobre a terra. / Centopeias brilham como archotes em destroços. / Nas veredas de cruzes ecoa uma litania. / E vespas dançam pavanas sob a lua fria. / O espanto urde teias de amarga sabedoria / Enquanto bodes soltos percorrem a savana./ Negros bodes e cabras praticam seu rito obscuro, / na pax sepulcral urdem magias de ossos pálidos./ De tíbias erguem fachos que acendem fosso e muro, / transmutam carne extinta em cal de brancos mármores./ Tinturas vis escorrem das mariposas trêmulas,/ esmaltam o esfíngico ânus do chão soturno./ Clânicas teias dormem nas vísceras do húmus,/ guardando a confiança do verme taciturno./ A carne arde em fogo que o sal jamais dissipa;/ labaredas devoram o que a noite equipara./ Minhocas esperam sempre o peixe que declina,/ na liturgia noturna que a morte sempre ampara.
O recital encerrou-se em um fecho de matiz oceânica com O Puteiro das Nereidas, poema insólito que parecia converter o velório em um palco submerso.
Os operários de Poseidon estão com alguns vinténs furados / nos bolsos descosturados de suas roupas andrajosas; / os dentes putrefatos emolduram sorrisos alcoolizados / que cortejam a graça de nereidas infectadas e indecorosas./ Os operários de Poseidon nelas veem um valioso cristal: / querem lapidar aquelas curvas sem celulite ou varizes, / beijar os lábios férteis em herpes bucal / e, nestes ósculos, sorver a saliva fértil em hemoptise. / Do rubor das calcinhas escorre um amarelado corrimento, / enquanto os operários de Poseidon se deleitam com o cigarro;/ as nereidas sifilizadas frustram o prazer do lascivo intento / quando, em meio à cópula, vomitam um rubro catarro / sobre a face dos clientes que apagam no abjeto quarto, / para acordar, no outro dia, cobertos de sangue e bosta de gato, / e com os corpos besuntados de fétidos líquidos tumulares / e gotas de sangue mênstruo manchado nos calcanhares.
Quando Tubalcaim finalmente fechou o caderno que continha dezenas de textos inéditos, o silêncio era profundo. O jovem colocou o caderno nas mãos do avô, entrelaçando-lhe os dedos ao objeto. Era como se devolvesse a Jubal a própria alma. O grupo de choro, então, tocou Carinhoso, e o velório revestiu-se de contornos primevos, lembrando aquelas priscas eras esquecidas nos porões do tempo, quando poesia e música caminhavam juntas nas sendas da arte.
No dia seguinte ao enterro, Itapecuru-Mirim comentava os ritos fúnebres como se fossem espetáculo. Uns criticavam:
— Aquilo não era poema pra se ler na frente de defunto!
Outros defendiam:
— Era a arte dele. Deixem o homem em paz.
Alguns, surpreendentemente, pediam cópias. Queriam saber quem era aquele Jubal que nunca existira para eles, enquanto a filha primogênita passou dias em silêncio, relendo trechos do caderno e tentando conciliar o pai que conheceu com o poeta desconhecido. A viúva alternava entre orgulho e susto:
— Meu Jubal escrevendo essas coisas…
— Mas era tão talentoso…
Duas professoras de Literatura do Ensino Médio manifestaram interesse em construir trilhas didáticas com os versos póstumos de Jubal; um músico da cidade sugeriu musicalizar alguns poemas; e o jornalista Alberto Júnior publicara, em seu site itapecurunoticias.com, uma matéria intitulada “Os versos esquecidos de Jubal, filho de Lameque”.
Certa tarde, sentindo-se herdeiro intelectual do avô, Tubalcaim reuniu a família e propôs:
— Nós poderíamos publicar o livro do vovô. Com o nome dele. Do jeito que ele escreveu.
A ideia encantou a todos. À semeadura seguiu-se o brotar de frutos: naquela mesma noite, Tubalcaim sonhou com o avô sentado à beira da cama, o violão de sete cordas repousando sobre as coxas.
— Meu neto… agradeço o recital. Eu nunca tive coragem de apresentar meus versos. Você me deu um palco.
Meses depois, o livro finalmente ganhou forma: Visões Cemiteriais e Outros Cânticos de Jubal, Filho de Lameque. O lançamento ocorreu na Casa de Cultura Professor João Silveira, o mesmo lugar onde o autor fora velado. O grupo de choro executou novamente os belos choros de seu repertório, acrescentando peças de Chiquinha Gonzaga e Zequinha de Abreu. Naquela noite de celebração, Tubalcaim leu trechos do livro, e Jubal — o homem discreto, desconhecido, invisível — finalmente se transformou no que sempre deveria ter sido: um poeta.