
A VEIA LITERÁRIA DO DEFENSOR PÚBLICO
Theotonio Fonseca
Diz-se que ninguém foge incólume à chama da verdadeira vocação. Seja com os pés calcinados, os olhos consumidos por labaredas ou, sobretudo, com a alma chamuscada por fogo brando — sabe-se que, nesta fogueira de São João vocacional, não há lenha que não seja minimamente lambida por línguas incandescentes.
Desses ígneos entrelugares conhecia o recôndito pavilhão o defensor público, recém-empossado em concurso e lotado em um município da porção leste maranhense. Nem as lides forenses como advogado, nem a carreira jurídica que então iniciava apagaram do mural magnético de seu cosmos íntimo a veia literária que misteriosamente irrompia de sua subjetividade. Quando, em época de abstinência, tentava negá-la, ela se manifestava no proeminente inchaço das veias jugulares — e a normalidade braquiocefálica só era restabelecida quando o defensor público dava vazão ao talento estético que, desde a adolescência, quisera reprimir.
A literatura médica desconhecia casos clínicos emblemáticos em que veias inominadas e veia literária se entrecruzassem organicamente na fisiologia do corpo e da alma de um ser humano.
Se os períodos de abstinência literária eram breves, a jugular mantinha-se quase imperceptível no pescoço; contudo, se houvesse prorrogação, a veia sobressaltava, tornando-se aparente a quem o observasse. Assim, o servidor público passara a utilizar, mesmo sob o clima inadequado da região da mata dos cocais maranhense, belíssimos cachecóis que disfarçavam a alteração venosa — saliência que tatuava sua epiderme com a indagação de quem a visse, de que algo de errado acometia o jovem profissional.
Convencido a não ceder aos caprichos das guardiãs do destino que selaram seu corpo com essa estranha indissociabilidade, transpusera cinco longos meses sem produzir narrativas ou poemas. A jugular doía-lhe, e analgésicos não lhe aplacavam as dores; o estado febril já não cedia a antitérmicos — um corolário de tormentos que comprometia sua produtividade no trabalho e seu humor nas interações humanas.
Certa madrugada, fora visitado por pesadelos que mesclavam imagens extraídas de obras diversas: o leopardo de Borges, o verdugo que executara Josef K. no romance de Kafka, dentre outras personagens. Até que se viu transportado para uma encruzilhada em alguma cidade esquecida do sul dos Estados Unidos. Pensou que um blues de Robert Johnson ecoaria das reentrâncias telúricas, absorvendo-o para a antessala de algum inferno dantesco.
Contudo, o que ouviu foi o crocitar de uma legião de corvos rasgando a garganta do firmamento carregado de nuvens de chuva. O defensor público acordou banhado em suor, como se houvesse fugido de uma temporada no inferno. Sem resistir à dor física e existencial que o consumia como labaredas a crepitar gravetos, abriu o notebook e iniciou um conto. À medida que avançava na estrada deserta da folha em branco, preenchendo-a com parágrafos, a veia jugular voltava ao normal; as dores exilaram-se de seu corpo, e ele soube que, doravante, não mais insistiria na infausta opção de seguir o Direito em detrimento da Literatura.
Caminharia, antes, como peregrino de uma estrada bifurcada — percorrendo-a com as pernas abertas, sem optar por uma em desfavor da outra —, seguindo a confluência do mar, com a terceira margem do rio: a síntese das vocações em um périplo-pororoca, Odisseu que sonha com Penélope, tendo os pés atados ao chão do navegar cotidiano.
Theotonio Fonseca de Sousa é professor, poeta, escritor e advogado. Foi membro consultivo da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, e atualmente compõe a Comissão de Advocacia Criminal da OAB/MA.