
A DANAÇÃO DO DR. VLAD NA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Theotonio Fonseca
O Dr. Vlad deixara a arcaica Transilvânia quando o prestígio de seus derradeiros galões nobiliárquicos fora confiscado pelas laudas romanescas de Bram Stoker, que, paradoxalmente, imprimira medo ao misterioso vampiro descrito em sua narrativa e motivara peregrinações de leitores que se aventuravam pelos vetustos arvoredos que circundavam seu lar, em busca de conhecê-lo.
Condenado ao exílio, perdera o condado, os servos e o brasão herdado dos ancestrais que empalavam o campesinato dos Cárpatos. O tempo — esse ente vampiresco — o expulsara de seu encastelado lar, lançando-o em um navio com destino ao cálido hemisfério onde o sol crepita colonialismos entre as veias abertas latino-americanas — o Brasil.
Aqui, reinventou-se. Deixou de ser conde e tornou-se magistrado, jurando fidelidade a uma Carta Cidadã cuja principiologia, cerzida à dignidade da pessoa humana, jamais compreendera. Assinou papéis, aprendeu o vernáculo e ocultou o sotaque romeno sob a prosódia do português brasileiro.
Os que laboravam ao seu redor estranhavam o perfume metálico que o acompanhava pelos corredores do fórum — um odor férreo, como de lâmina recém-lambida. Não ingeria café nem água; apenas encostava os lábios na borda do copo, como se provasse o ar. Suas unhas eram levemente azuladas, e havia em seu olhar uma penumbra de cripta esmeraldina.
Durante três décadas manteve o disfarce nas lides da judicatura. Avesso aos postulados garantistas, pronunciava réus, negava habeas corpus e carimbava existências com o zelo de quem finca estacas-éditos de desproporcionais condenações em corações inocentes.
A lavra autoritária de sua pena punitivista era instrumento de uma sede antiga — a sede pelo sangue dos vulneráveis. Nas audiências, deleitava-se ao ver os empobrecidos curvarem-se, os negros implorarem, as mulheres tremerem. No íntimo, era ainda o senhor das masmorras de Târgu Mureș, agora reencarnado na quadra histórica dos processos eletrônicos.
Naquela manhã cálida, constava na pauta a audiência de custódia de Cosme Bento das Chagas, vinte e quatro anos, morador do Quilombo da Pedra do Sal, estudante de Direito pelo ProUni, capoeirista e poeta.
Segundo o auto de prisão em flagrante, fora abordado pela Polícia Militar na saída de um baile funk em Madureira, por volta das duas da madrugada. Os agentes relataram “atitude suspeita” e “fundado motivo para busca veicular”, afirmando ter encontrado três papelotes de cocaína no porta-malas do veículo.
Cosme, entretanto, desde o primeiro momento, sustentara tratar-se de flagrante forjado. Dissera aos policiais que a abordagem fora motivada por preconceito racial, pois estava apenas indo ao baile com amigos e tivera a ousadia de questionar o fundamento jurídico da revista pessoal e do veículo, invocando o art. 244 do CPP e o princípio da razoabilidade. A altivez e o léxico jurídico irritaram os agentes, que o conduziram à delegacia sob insultos e ameaças.
Na audiência, o juiz ajeitou a toga, pigarreou e determinou que se observasse o rito do art. 310 do Código de Processo Penal.
Estavam presentes o representante do Ministério Público e a advogada Esperança Garcia, jovem defensora negra, formada recentemente e moradora da mesma comunidade do custodiado.
— Vamos proceder à qualificação — disse o magistrado, sem levantar os olhos do processo. — Nome completo?
— Cosme Bento das Chagas, Excelência.
— Filiação?
— Filho de Tereza de Benguela das Chagas e de Bento Abdias do Nascimento.
— Idade?
— Vinte e três anos.
— Profissão?
— Estudante de Direito, desempregado no momento.
A secretária registrou, enquanto o promotor, distraído, recebia uma mensagem no celular — o leve sorriso que esboçou não denunciava o conteúdo, embora, diante de si, se discutisse a liberdade de um homem.
— O senhor foi informado de seus direitos no momento da prisão? — prosseguiu o magistrado.
— Não, doutor. Apenas disseram que “quem muito fala apanha”.
A advogada interveio com serenidade técnica:
— Excelência, requeiro a palavra para consignar a nulidade da prisão em flagrante. O auto é manifestamente ilegal: a busca foi realizada sem fundado motivo, conforme exige o art. 244 do CPP e a jurisprudência consolidada do STF. O custodiado foi alvo de abordagem seletiva, com claro viés racial. Requeiro o relaxamento da prisão, nos termos do art. 310, I, do CPP, e o encaminhamento do feito à Corregedoria da Polícia Militar.
A penumbra da sala aumentou, como se o sol se recusasse a adentrá-la. O promotor tossiu. Michel ajeitou-se na poltrona. O magistrado ergueu os olhos, o cenho fechado:
— O senhor compreende a gravidade do ato? — dirigiu-se ao réu, em voz subterrânea.
— Compreendo a gravidade do abuso, doutor — respondeu Cosme. — Estudo Direito. Sei que a prisão é exceção e que a liberdade é regra constitucional.
As pupilas do juiz dilataram-se. O discurso técnico do jovem era como um espelho que refletia sua própria decadência. Ele, que durante décadas se alimentara da obediência dos corpos e do silêncio das bocas, agora via diante de si um custodiado que não ignorava o rol de seus direitos e garantias fundamentais, que conhecia o art. 5º da Constituição e o art. 310 do Código de Processo Penal.
A toga tremulara como a vela de um xaveco mouro, osculada por zéfiro. Um bafejo gélido percorreu o recinto.
— O senhor se acha advogado? — sibilou Michel.
— Acho-me cidadão, Excelência.
O promotor levantou-se, inquieto. A secretária notou que a pele do juiz começava a esverdear, enquanto as luzes pestanejaram. Foi então que o magistrado ergueu-se, possuído pela fúria ancestral das masmorras de Târgu Mureș, e gritou:
— Determino a morte por empalamento! Recolham-no ao ergástulo até o crepúsculo, quando meu édito condenatório deverá ser executado em praça pública!
Cosme gargalhou diante dos olhos arregalados do presidente da audiência e disse:
— Rir, Excelência, é tecnologia de sobrevivência aos vossos éditos sentenciais — estéreis em garantismo e férteis em seletividade penal, com recheio de arbitrariedade e pitadas de racismo institucional.
O Ministério Público recuou. A defensora Esperança tentou invocar o art. 5º, XLVII, “a”, da Constituição. A voz do magistrado — que se metamorfoseava em nuances de inseto kafkiano — dissolvia-se em sôfrego crocitar. A toga rasgou-se, revelando o corpo exangue. As veias saltaram, as presas apareceram na moldura encovada de um morto-vivo.
Diante do medo e do terror que se abateram sobre a sala de audiência, apenas o jovem custodiado e sua defensora permaneceram impassíveis, assistindo à cena insólita de um magistrado esmigalhar-se, transformado em centenas de baratas que, aos borbotões, espalharam-se pelo fórum da comarca.
Como se uma cortina mágica houvesse ocultado o segredo que tantos olhos testemunharam, a secretaria judicial não logrou êxito em localizar, no PJe, quaisquer referências à dantesca audiência.
Os serventuários que presenciaram a insólita danação do Dr. Vlad aguardavam, enovelados pelo carretel da ansiosa expectativa, que o julgador metamorfo fosse substituído e que a normalidade forense, enfim, fosse restabelecida.
Theotonio Fonseca de Sousa é professor, poeta, escritor e advogado. Foi membro consultivo da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, e atualmente compõe a Comissão de Advocacia Criminal da OAB/MA.