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O GUARDA PENAL PSICOPOMPO

Quando a execução da pena se converte em rito de passagem: o último turno do guardião das almas encarceradas.

Theotônio Fonseca
Por: Theotônio Fonseca
29/10/2025 às 07h10
O GUARDA PENAL PSICOPOMPO
Imagem produzida com IA

O GUARDA PENAL PSICOPOMPO

Theotonio Fonseca

            O calabouço medievo, a que chamavam penitenciária, erguia-se na capital daquela unidade federativa como um imenso monumento às estâncias de Plutão. Ao vê-lo, transeuntes e viajantes sentiam o temor de um dia realizar estadia no inferno que ele personificava, mas também eram tocados por um paradoxal sentimento de justiça para com os que delinquiram — e de misericórdia pelos que, inocentemente, adentraram aqueles fétidos pavilhões.

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            Não havia Estige nem barco às margens daquele lugar, mas Raimundo Caronte, o mais antigo guarda penal lotado ali — que exercia precisamente a função de carcereiro —, gozava de profundo respeito entre os apenados. Como um psicopompo, conduzia corpos entre grades e corredores — e algo mais, que ninguém confessava ver: uma réstia de sopros, restos de prenomes, restolhos de memórias que a colheita da execução penal lhe pousava nos ombros ao fechar as celas.

            Após três décadas exercendo aquele infausto ofício de conduzir sentenciados às galés do cumprimento de suas penas — sabendo que muitos não regressariam para viver além dos muros da masmorra; que outros enlouqueceriam; alguns aprimorariam os aprendizados na escola dos delitos; e poucos, enfim, reinventar-se-iam, ressocializando-se para não mais regressar àquele lânguido lugar —, o guarda penal pendurou o pesado molho de chaves e requisitou aguardar sua aposentadoria na biblioteca do presídio.

            Sua remoção fora deferida, e ele levara consigo os Diários de Travessias, onde constavam os nomes e as datas de cada encarcerado que conduzira ao círculo dantesco de suas danações. Ali estavam também as datas daqueles que sucumbiriam em rebeliões, por enfermidade ou acerto de contas, bem como os que reconduzira à liberdade após a estadia avernal.

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            Convinham ainda, nos trinta diários — um volume para cada ano civil laborado —, os nomes dos que regressariam ao sistema prisional, reincidentes em suas violações às normas penais.

Em seu derradeiro dia de trabalho — o que antecedia a tão aguardada aposentadoria —, ocorreu a rebelião.

            Os amotinados fizeram-se minotauros desgovernados: aquela dimensão do reino dos mortos tornara-se um labirinto; não havia fio de Ariadne que lhes indicasse o caminho de volta ao sol. Entre gritos de derradeiro estertor, acertos de contas entre facções e corredores a arder em labaredas que também consumiam colchões, Raimundo Caronte correu em disparada com outros funcionários. Mas, antes que alcançasse a porta que dava para a parte externa do presídio, foi ceifado por um golpe de barra de ferro desferido por um apenado de rosto encoberto por uma camisa.

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            Ao perceber quem atingira, o amotinado reconheceu o carcereiro a quem todos estimavam e, tomado de horror, tentou socorrê-lo.

            Mas o golpe, de tão pujante, abrira-lhe o crânio, e o psicopompo, já moribundo, despedia-se da vida enquanto Hermes — estendendo-lhe a mão — o conduzia pelos ares aos Campos Elísios.

            Ele não atravessaria o Estige, tampouco se sentaria na proa da balsa do barqueiro.

            Quando tombou ao chão, duas moedas de um real rolaram de sua algibeira: ali jazia o quinhão que selaria sua passagem — seu óbolo em moeda corrente na terra dos papagaios amarelos.

Theotonio Fonseca de Sousa é professor, poeta, escritor e advogado. Foi membro consultivo da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, e atualmente compõe a Comissão de Advocacia Criminal da OAB/MA.

 

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