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LOURENÇA COMO POSSÍVEL PARTÍCIPE DO ASSASSINATO DE VANJU

Abordagem sobre a personagem mais enigmática do livro Cais da Sagração de Josué Montello

Samira Fonseca
Por: Samira Fonseca
29/06/2025 às 11h56
LOURENÇA COMO POSSÍVEL PARTÍCIPE DO ASSASSINATO DE VANJU
Livro Cais da Sagração de Josué Montello

O papel do cúmplice é, basicamente, o de dar sustentação às ações do autor principal que pratica o ato. A participação moral em um crime também deve ser levada em consideração, principalmente quando este culmina no falecimento da vítima. De acordo com Lopes (2021, p. 60), a participação moral “ocorre por induzimento, quando o partícipe dá a ideia criminosa para o autor, ou por instigação, quando o partícipe reforça uma ideia já existente”. Ou seja, o partícipe não precisa realizar o crime — basta incitar alguém a praticá-lo; o indivíduo começa a colocar ideias na mente de uma pessoa ou alimenta a ideia da consumação de um crime já existente em mente.

Há uma diferença entre coautor e partícipe de um crime: “O coautor [...] tem o mesmo envolvimento de um autor. No entanto, pode ter pena distinta, de acordo com o grau de participação e a gravidade de seus atos para o crime. Partícipe tem envolvimento menor, alguém que ajuda na prática do crime, mas não realiza o ato principal” (TJDFT, 2022).

A cumplicidade por meio da participação moral em um crime é tão nociva quanto a participação material — esta consiste em colaborar para a execução, com o fornecimento de objetos para que se cometa o crime.

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Portanto, o crime de cumplicidade ou participação moral não é deixado de lado pela Justiça. Na Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, do Código Penal Brasileiro, diz: “Quem, de qualquer modo, concorrer para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. §1º Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço”.

Pouco se vê o cumprimento dessa lei. Geralmente, quem comete um crime não sabe sobre a existência dela e não cita que fora instigado ou induzido com palavras a praticar o delito, tomando para si toda a pena. Outras vezes, o autor principal não quer envolver o partícipe no crime, para protegê-lo.

Acaso teria Mestre Severino ocultado a participação moral de Lourença no assassinato de Vanju?

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UMA PARTÍCIPE DO ASSASSINATO DE VANJU NAS ENTRELINHAS DA CONFISSÃO DE MESTRE SEVERINO

Quem lê de forma prazerosa o romance Cais da Sagração, de Josué Montello, dificilmente atenta-se à confissão de Mestre Severino ao padre Dourado. Geralmente, o leitor fica estarrecido com a narrativa do barqueiro sobre o acontecimento. Porém, é nas entrelinhas desse discurso que podemos enxergar Lourença como partícipe do crime.

É preciso relembrar a narrativa montelliana, que diz que Mestre Severino era barqueiro e vivia boa parte do tempo em alto-mar, rumo a São Luís. Contudo, havia detalhes do cotidiano de Vanju que ele conhecia perfeitamente.

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Logo no início de sua confissão, Mestre Severino diz que não queria que Vanju se debruçasse à janela. Embora ele tenha cedido ao capricho da mulher, permitindo que ela ficasse à janela, ele dá o seguinte detalhe:

A Vanju passou a se debruçar na janela como retrato na moldura, parecia que não queria outra vida. Mal o dia começava, já ela estava ali. Chegou mesmo a botar uma cadeira da sala junto ao peitoril, para sentar quando cansava de estar em pé [...] E sempre enfeitada, como se fosse sair. (MONTELLO,1971, p. 113).

 

Como ele sabia que Vanju tinha esses hábitos diários, se não ficava o tempo inteiro em casa? Um outro ponto da confissão que deve ser levado em consideração é quando Mestre Severino atentou que Vanju não o esperava mais no porto, pensando que ela estivesse ocupada com os afazeres maternos. Mas ele mesmo afirma:

Pois foi aí que me enganei, padre Dourado. A Vanju mal olhava para a filha. Quem olhava era a Lourença. Tanto de dia quanto de noite. De madrugada quando a menina chorava, não pense que era a mãe que se levantava para mudar a fralda: era também Lourença. (MONTELLO, 1971, p. 111-112)

 

Mestre Severino era ausente em casa, como aponta o narrador ao desvendar a onisciência de Lourença, dizendo que “como mulher de barqueiro, estava de algum modo afeita às suas ausências” (MONTELLO, 1971, p. 64). Então, como o barqueiro sabia que Vanju não cuidava da filha nem de dia, nem de noite? Os dois questionamentos só podem ser respondidos com um nome: Lourença.

É possível que Lourença tenha relatado para Mestre Severino, o homem que ela amava, todo o cotidiano de Vanju. E isso se comprova porque, na confissão ao padre Dourado, ele não quis colocá-la em situação complicada com a justiça, falando do silêncio de Lourença desde quando Vanju passou a viver com eles, dizendo: “Chamei de parte a Lourença, para me contar o que sabia. Mas a Lourença, desde que eu casei, deixou de falar” (MONTELLO, 1971, p. 114).

O professor e escritor José Neres, em um artigo intitulado Um breve passeio pelo Cais da Sagração, afirma que Mestre Severino “mata por desconfiar da infidelidade, mas ele próprio dá mostras de ser também infiel” (NERES, 2017). Provavelmente, essa infidelidade se dava com Lourença, nas noites em que Vanju o rejeitava na cama como marido. E, possivelmente, as delações sobre o comportamento da esposa do barqueiro aconteciam naquele momento.

Não é possível dizer que Lourença tenha presenciado a traição de Vanju, mas os detalhes que só ela sabia, e que Mestre Severino confessou ao padre como se estivesse presente diariamente em casa, fazem dela partícipe do crime cometido pelo barqueiro.

Lourença é tão partícipe do crime que, quando Mestre Severino é preso, ela faz os preparativos para o velório e, posteriormente, a construção do jazigo de Vanju, feito do jeito que o velho barqueiro havia pedido: “veio o mármore preto que você mandou buscar em São Luís” (MONTELLO, 1971, p. 132).

A respeito de não querer incriminar Lourença, parte do fato de que ela precisava estar livre para, assim, criar Mercedes, filha do barqueiro e que, a partir de então, ficara órfã de mãe. Além disso, deveria cuidar da casa, do barco e das coisas de Mestre Severino.

Na verdade apesar do infortúnio, que o deprimia, Mestre Severino era levado a reconhecer que não tinha razão para se queixar. Lá fora Lourença cuidava de tudo, mesmo de seus negócios, com um tato, uma vigilância e um acerto que o surpreendiam. (MONTELLO, 1971, p.132).  

 

É certo que, como um bom anti-herói, ele precisava preservar aquela que sempre lhe fez bem, eximindo-a de qualquer participação moral na morte de Vanju. E, para alguém que, psicologicamente, já havia sofrido tanto, essa postura por parte de Mestre Severino, talvez tenha sido a mais acertada.

Ainda há muito a ser estudado sobre essa obra tão envolvente da Literatura Brasileira e, talvez, repensados os hiatos deixados propositalmente por Josué Montello em Cais da Sagração. Um exemplo disso é o silêncio de Vanju, uma vez que, a narrativa é construída sob a ótica de Mestre Severino e de um narrador masculino.

 

Samira Fonseca é Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Tocantins. Membro da Academia Vargem-Grandense de Letras e Artes - AVLA.

 REFERÊNCIAS:

LOPES, Mauricio Paula. Fundamento de punibilidade da participação e a participação por ações neutras. Dom Helder Revista de Direito, v.4, n.9, p. 55-72, julho/dezembro de 2021. disponível em:< https://revista.domhelder.edu.br/index.php/dhrevistadedireito/article/view/2204/25350>. acesso em: 15 de abril de 2025.

 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA – MJ. Decreto-Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940. Disponível em: <https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=DEL&numero=2848&ano=1940&ato=1bb0za61ENNRkTf8b>. Acesso em: 15 de abril de 2025.

 MONTELLO, Josué.      Cais da sagração. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1971.

NERES, José. Um breve passeio pelo cais da sagração. Disponível em: https://casas.cultura.ma.gov.br/ccjm/?page=noticia_estendida&id=133. Acesso em 29 de abr de 2025. 

 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. Autor x Coautor x Partícipe. Disponível em:<https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/autor-x-coautor-x-participe> 08 de julho de 2022. Acesso em: 29 de abr de 2025.

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