Sem ter muito o que fazer naquela manhã, o sacristão subiu ao campanário da Matriz de Nossa Senhora das Dores e, da janela mais alta, sentou-se e pôs-se a observar os passos das pessoas que, lá embaixo, não percebiam que estavam sendo espreitadas. Ficou ali por alguns minutos, até que um homem branco, com uma espada embainhada pendurada na cintura, chegou ao local. O sacristão assustou-se com a presença do indivíduo e perguntou o que ele fazia ali e quem era.
̶ Faço a mesma coisa que você: nada. E quem sou não importa – respondeu o homem, sentado na outra janela. – Fique tranquilo, vim apenas pensar.
O sacristão, desconfiado, colocou a mão no bolso à procura do celular, mas não o encontrou. ̶ Teria deixado em casa ou na sacristia? – lamentou, pensando estar correndo perigo ao lado daquele estranho. O homem, por sua vez, começou a falar:
̶ Seu celular ficou na sacristia. Já disse que vim aqui para pensar e não para lhe fazer mal.
̶ E no que você está pensando? Creio que o conheço de algum lugar, talvez da minha infância – disse o sacristão, um pouco mais calmo.
̶ Penso nesta terra, neste povo, nos mistérios que pairam por aqui, nos fatos que ocorrem na calada da noite... Nos conchavos políticos, na miséria e na grandeza desta cidade.
O sacristão, olhando para o homem, pareceu-lhe vê-lo como um louco. Mesmo assim, comentou que toda cidade era assim e que havia cidades piores.
̶ Sei bem. Contudo, conheci esta cidade ordeira, alegre e sem tanta vilania. Está vendo aquela rua? No fim dela começa a Rua João Buzar. Naquele tempo, os moradores sentavam-se à frente de suas casas e, cada vez que alguém passava, saíam a cumprimentar um por um dos vizinhos.
Esse povo era simples. Lembro-me dos vaqueiros que levavam o gado para pastar, aboiando por entre as ruas e vielas de pedras; das mulheres que desciam à Rua da Bica para pegar água límpida; dos músicos que se encontravam para ensaiar os dobrados para o festejo da padroeira...
O sacristão, diante daquelas lembranças, respondeu:
̶ Você é saudosista demais! Os tempos mudaram, as coisas evoluíram, a violência aumentou... Se é que realmente aumentou, ou foi a tecnologia que deixou tudo à mostra, na velocidade do tempo real.
̶ Você é surdo, ou o quê? Eu disse que conheci esta cidade ordeira. Se o seu conceito de evolução é violência e morte, lamento. Você é só mais um – respondeu o homem, de forma ríspida.
̶ Não, não sou mais um. Eu me preocupo com o meu lugar. Mas a ambição, a inescrupulosidade e o charlatanismo de uns acabou trazendo desilusão a este povo, que se contenta com o pouco e ainda acha que está tudo bem. Cada um olha apenas para si. Inclusive, este nosso diálogo aqui é inútil – disse o sacristão.
O homem levantou-se da janela, pegou a corda onde estava preso o badalo do sino e viu, ao longe, um acidente de trânsito. Seus olhos fixaram-se no movimento das pessoas que se aglomerava no local. Então respondeu ao sacristão:
̶ É verdade. Concordo. Bom, pelo menos serviu para desabafar um pouco.
Nesse momento, ouviram-se passos de alguém subindo as escadas do campanário, correndo. Era um homem negro que, mesmo exausto da subida, disse:
̶ Miguel, desça! Maria está ali no meio da rua protegendo os envolvidos do acidente. Precisamos de você agora.
O sacristão olhou para os dois, que logo desceram as escadas conversando sobre a gravidade da colisão entre um carro e uma moto. Rapidamente, da janela, ele olhou para baixo e para o local do acidente à procura dos dois homens, mas não os viu em lugar algum. Só então disse a si mesmo:
̶ Eu preciso parar de beber os vinhos da adega do padre. Daqui a pouco ele vai pensar que estou ficando doido, vendo e falando com São Miguel Arcanjo...
Só então o sacristão desceu os degraus das escadas do campanário para fechar a igreja.
Samira Fonseca é Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Tocantins, ocupante da cadeira n° 33 da Academia Vargem-Grandense de Letras e Artes.