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DAS RECORDAÇÕES DA RUA GETÚLIO VARGAS

Entre memórias e mudanças, o retrato de uma rua marcada pelo tempo.

Samira Fonseca
Por: Samira Fonseca
21/07/2025 às 08h00
DAS RECORDAÇÕES DA RUA GETÚLIO VARGAS
Arquivo pessoal

Na canção o Tempo e o Rio, de Têtes Raides, interpretada por Maria Bethânia diz: “o tempo é como um rio que caminha para o mar”, quando olho para a minha rua percebo que o trecho da canção nunca teve tanto sentido como atualmente e como diz o poema de Cecília Meireles, “eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil”, o fato é que ela aconteceu e desde os primeiros raios de sol já pode ser vista.

Recordo de na minha infância acordar todas as manhãs com o canto escandaloso de vários galos que desde às 5h já terciam o amanhecer, despertando-nos para mais um dia de trabalho. Hoje desperto com um quebra-quebra advindo da casa do novo vizinho e o motivo? O velho adultério. Ah se meu tio Ném fosse vivo, com certeza diria: “Só deu pra radiola dele!”. E por falar no tio Ném, lembrei de quando cedo ele vinha aqui em casa conversar com meu pai, chegava em sua monark azul de barra circular; na prosa dos dois estava assuntos de serviço, da vizinhança da rua onde morava e sobre a pescaria que no final da tarde ele faria, sozinho.

Não demorava muito, dona Lídia passava com uma trouxa de roupas na cabeça e um balaio nas mãos, rumo ao rio Itapecuru. Junto a ela as filhas cuja alcunha era Mocinha e Dondinha; iam lavar roupas de outras pessoas a fim de ganhar um dinheirinho para ajudar a alimentar a família, que ainda era composta por dois rapazes. Hoje paro para refletir e vejo que a Senhora das águas, ali junto a ela, lavava a alma daquela gente pobre e sofredora.

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Esses velhos areais entranhados na rua Getúlio Vargas, traz a minha memória, as tardes ensolaradas onde eu, sem ter o que fazer depois das atividades escolares, saía correndo atrás das borboletas amarelas e depois do esforço para capturá-las, mostrava à minha avó que  do nada me colocou um medo na alma, quando disse que eu ficaria cega, caso passasse as mãos nos olhos, pois meus dedos estariam sujos do pó ou seja, das escamas do inseto.  O que tempos depois descobri não ser verdade, os estudos científicos afirmam que dá apenas uma irritação ocular, mas não cega. Pelo sim ou pelo não, sigo as instruções de minha avó até hoje. 

No fim da tarde descia naquela rua de piçarras, dona Maria Senna, responsável por fazer o melhor bolo de arroz que havia em Itapecuru. Não demorava muito, Mariel passava com uma panela cheia de mingau de milho e uma garrafa de café. Minutos depois, tia Telma surgia com uma travessa contendo bolos de arroz com cravos, e bolos de milho, estes últimos já vinham cortados em quadradinhos, e seriam vendidos pelas mãos de dona Maria Aragão, ali ao lado do antigo hotel de seu Bebé. Ah, aqueles bolos eram melhores que quaisquer outros produzidos em panificadoras ou casas do bolo de hoje em dia! Em especial o bolo de milho que exalava um doce perfume de milho verde, e atualmente se converteu em cheiro de saudade.

Às 17:15, descia a velha rua, em passos lentos, dona Maria José, vinha de mais um dia de trabalho no Hospital Regional Adélia Matos Fonseca. Certamente encontraria a casa cheia de crianças a sua espera, principalmente o seu netinho que era mais que especial, o anjo Felipe Fonseca.   

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E como não recordar de dona “Dos Reis”, o passarinho que vivia a louvar ao Senhor. Ela com seus cabelos longos e lisos, preparava a celebração de cultos diante de sua residência.  Até hoje recordo dos hinos da harpa cristã sendo entoados por ela e por seus irmãos que, eu na minha inocência, chamava de “crentes” e não de protestantes.

Dona Isabel e seu Zé, sentavam a porta de sua residência para conversar com dona Alcira e Mariazinha, enquanto que na calçada dos fundos da antiga Clínica Santa Rosa, o filho adotivo do casal, o Willian, fazia a armação de uma pipa que, provavelmente, soltaria no dia seguinte. Jamais poderia imaginar que aquela criança viveria por pouco tempo e teria sua vida ceifada com um golpe de facão no pescoço. Ele se tornaria mais um nas estatísticas da violência de Itapecuru-Mirim.

Mas voltando para as minhas lembranças, ainda recordo de Carrinho, morador da Avenida Beira-Rio, que todo final de tarde colocava a mesa para o jogo de dominó e minutos depois homens daquela e de outras ruas vizinhas, caminhavam para jogar mais uma partida. Da porta de minha casa dava para se ouvir a batida das peças na mesa e a voz de alguém gritando, “barata!”

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Hoje a rua de Paralelepípedos que ocultaram as pegadas de nossos ancestrais, segue meio que tranquila, silenciosa em boa parte do tempo, salvo em algumas vezes, como o caso da desavença do novo vizinho; mas, quieta e reflexiva, talvez pensando que um dia já foi mais feliz com a simplicidade de seus primeiros moradores. E mais adiante o rio Itapecuru, de encantos lendários, segue calmo a caminho do mar, semelhante ao tempo que leva para longe minhas recordações da rua Getúlio Vargas.

 

    *Samira Fonseca é Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Tocantins, ocupante da cadeira n° 33 da Academia Vargem-Grandense de Letras e Artes.

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