PERSONAGENS:
Mariana Luz
Luíz Bandeira
Joaquim Araújo
Gonçalves Dias
ATO 1
CENÁRIO I
CENA I
(É manhã de sábado. Mariana Luz está em sua residência, terminando de se arrumar para sair. Ela vai a um evento da Igreja, que está acontecendo no Itapecuru Social Clube. Nesse momento, surge em sua casa o seu grande amigo Luiz Bandeira, com um jornal em punho, e vai logo entrando e se sentando no sofá da sala.).
LUIZ BANDEIRA — Bom dia, Sianica!
MARIANA LUZ — Bom dia, Luiz! Não repare eu não poder lhe dar muita atenção; é que estou só terminando de me arrumar para poder sair. Vou já para o Encontrão da Legião de Maria, que está acontecendo no Itapecuru Social Clube. O bispo vai estar lá!
LUIZ BANDEIRA — Não se preocupe comigo, não. Olha, eu vou ali na cozinha tomar um pouco de café.
MARIANA LUZ — Tome lá, pode ficar à vontade. Tem leite, farinha e uns biscoitos de mesocarpo que ganhei de uma amiga que trabalha ali na escola. Dei uns ontem para os meninos, mas ainda tem bastante aí, dentro desse pote de vidro que está no armário.
CENA II
(Nesse momento, surge à porta da casa da poetisa o músico Joaquim Araújo, com sua clarineta em punho.)
JOAQUIM ARAÚJO: — Bom dia, Sianica!
LUIZ BANDEIRA (gritando da cozinha): — Entra aí, assoprador!
JOAQUIM ARAÚJO (se dirigindo para a cozinha da poetisa): — Rapaz, na sua casa não tem café, não? De manhã cedo e você aqui, filando o café da casa dos outros!
MARIANA LUZ: — Bom dia, Quincas! Fui eu que ofereci café para o Luiz. Aproveita e toma um pouco também.
LUIZ BANDEIRA: — É, come aí, assoprador, e larga de falar dos outros, que eu sei muito bem que você encostou para filar o café de Sianica também. Agora prova aí esses biscoitinhos; são deliciosos, feitos do pó do coco babaçu.
JOAQUIM ARAÚJO (comendo o biscoito): — Olha, né que é bom mesmo! Agora me diz, Sianica, para onde você vai em pleno sábado?
LUIZ BANDEIRA: — Ora, para onde? Para Roma, ver a bênção apostólica do Papa!
JOAQUIM ARAÚJO: — Também? Agora todo mundo está indo para Roma!
LUIZ BANDEIRA: — Roma é o berço da civilização ocidental. Quem bem souber, visite ou vá logo embora para lá de uma vez por todas. Se Sianica quisesse ir, era só pegar uma carona.
MARIANA LUZ (respondendo do quarto): — Conversa! Eu estou indo para o Itapecuru Social Clube; lá está tendo o Encontrão Diocesano da Legião de Maria.
(Mariana Luz sai do quarto e vai para a cozinha, onde os dois estão tomando café. Ela se senta em um banco de madeira e, enquanto Luiz Bandeira coloca a bebida para a poetisa, Joaquim Araújo fala.)
JOAQUIM ARAÚJO (sorvendo o café): — Minha esposa já foi para esse Encontrão. Lá está cheio de gente, todos vestidos de azul e branco, com uma sacolinha na mão. Minha mulher é legionária e está lá auxiliando o povo.
LUIZ BANDEIRA: — Pensei que ela tivesse ido peneirar.
JOAQUIM ARAÚJO: — Como é que é?
LUIZ BANDEIRA: — Na hora em que passei pela frente do clube, tinha uma moça cantando: “Quem entende de farinha, venha peneirar aqui!” Acho que levaram os materiais da casa de forno para lá e estão fazendo uma farinhada!
MARIANA LUZ (espantada com a fala de Luiz Bandeira): — Já cantaram farinhada? Minha Nossa Senhora das Dores, eu estou muito atrasada! Vou já lá!
(Nesse momento, a poetisa entra novamente no quarto para procurar seus artigos religiosos, que estão guardados dentro do armário. Vendo essa cena, Luiz Gonzaga logo exclama:)
LUIZ BANDEIRA — Sai desse armário, Sianica!
JOAQUIM ARAÚJO — Rapaz, deixa de molecagem. Olha que esse negócio de armário já deu um quiproquó lá na Câmara.
MARIANA LUZ (voltando à cozinha) — Pronto. Vocês me acompanham?
JOAQUIM ARAÚJO — Vamos, sim. Quero saber que história é essa de farinhada.
MARIANA LUZ (fazendo gesto com as mãos, como peneirando algo) — Eu também.
CENA III
(Antes que eles pudessem sair de casa, surge o poeta Gonçalves Dias e passa a falar em versos.)
GONÇALVES DIAS:
̶ Eis que vem de lá
Eu, Antônio Gonçalves
Dias, o poeta do sabiá!
JOAQUIM ARAÚJO: ̶ Lá ele!
MARIANA LUZ: ̶ Meu poeta maior, eu não acredito que você está em minha humilde terra natal!
GONÇALVES DIAS:
̶ Oh, senhora, pelo terço e pela cruz,
Tenho plena certeza
De que vós sejais
A grande poetisa, Mariana Luz!
LUIZ BANDEIRA (achando a cena patética): ̶ Meu Deus, pra quê isso!
GONÇALVES DIAS:
̶ Quem sois, cavalheiros?
Dizei-me agora e ligeiro,
Para conhecer vossa reputação
Aqui neste nobre rincão.
LUIZ BANDEIRA: ̶ Eu sou o autor da letra e da bandeira de Itapecuru. Digo isso sem rima, porque, se eu rimar Itapecuru, já sabe com que sílaba termina, né!
MARIANA LUZ: ̶ Luiz, deixe de coisa com o maior poeta do Brasil.
JOAQUIM ARAÚJO: ̶ E eu fiz a música do hino. Chamo-me Joaquim Araújo, sou clarinetista.
(Gonçalves Dias aperta a mão dos dois, depois se volta para Mariana Luz.)
MARIANA LUZ: ̶ Meu poeta maior, que ventos o trazem aqui à nossa querida terra, torrão natal de Souzinha?
GONÇALVES DIAS:
̶ Em um evento serei homenageado.
Os imortais que aqui estão
Chamaram-me neste pedaço de chão,
A fim de que fosse consagrado.
LUIZ BANDEIRA: ̶ Né nem lá essas coisas! É só uma conversa sobre a vida e obra dele. Vamos, Sianica!
MARIANA LUZ: ̶ Sua homenagem será à tarde. Podemos ir para o evento da Legião de Maria, enquanto o seu horário não chega.
GONÇALVES DIAS:
̶ Irei, sim, com muita alegria
E, acima de tudo, com emoção,
Pois tenho Jesus e Maria
No íntimo do meu coração.
CENA IV
(Os três saem da casa de Mariana Luz, rumo ao Itapecuru Social Clube. No caminho, Joaquim Araújo e Luiz Bandeira continuam conversando sobre a política do município.)
LUIZ BANDEIRA: — Mas, voltando a falar sobre a câmara… Rapaz, eu já vi lugar pra dar confusão! Eu acreditei que, depois do caso do Paulo Freyre, que nunca plantou um pé de mandacaru aqui, juro que o nível fosse melhorar um pouco. Assim, com discussão acalorada, mas com nível elevado.
JOAQUIM ARAÚJO: — É difícil quando o nível de escolaridade dá margem à politicagem momentânea. Porque o que se observa é que a maioria foi colocada ali, sabe Deus como, não por competência ou conhecimento. Na verdade, há muito a política menosprezou o conhecimento para dar lugar à simpatia. Se você é simpático, tem presença, corre o risco de ser vereador, quiçá gerir a própria prefeitura.
(Enquanto isso, Mariana Luz, de braços dados com o poeta Gonçalves Dias, vai falando sobre Itapecuru, como era e como está atualmente.)
MARIANA LUZ: — A praça não era assim. Contudo, um idiota mandou cortar as palmeiras que aqui havia e rebaixar os canteiros. A praça era linda e havia muitos ninhos de pássaros, inclusive de sabiás!
GONÇALVES DIAS:
— Pois pensei eu, senhora Mariana Luz,
Que nesta terra só havia imortal;
Engano meu. Na terra da Santa Cruz,
Também existe um punhado de boçal.
(Nesse momento, Joaquim Araújo olha para Luiz Bandeira e diz:)
JOAQUIM ARAÚJO: — Olha só, descobriu sozinho!
CENARIO II
CENA I
(Os três chegam ao Itapecuru Social Clube. O concurso de dança está acontecendo; é o momento recreativo das senhoras legionárias. A música “Farinhada” ainda está sendo cantada, pois é preciso escolher as representantes das cidades que estão presentes no Encontrão.)
LUIZ BANDEIRA: — Olha lá a tua mulher, peneirando!
JOAQUIM ARAÚJO: — Rapaz, né que é mesmo! Vou começar a tocar essa música pra ela dançar lá em casa. As músicas que eu toco, ela não gosta muito — pelo menos é o que eu acho, nunca a vi dançando em casa!
LUIZ BANDEIRA: — Eu pensei que você fosse dizer que iria comprar um terreno pra fazer uma roça. Mas também pudera… você só quer tocar dobrado! Quem é o doido que dança ao som de dobrados?
MARIANA LUZ: — Segurem aqui minhas coisas! (A poetisa entrega os artigos religiosos para Luiz Bandeira e sai para o centro da roda, onde várias mulheres estão dançando.)
LUIZ BANDEIRA: — Vem cá, você não era a santa? Deixa a Jucey ver você peneirando que a sua biografia vai ser modificada ainda esta semana. (E, olhando para Joaquim Araújo:) — Já pensou na matéria: Encontrado registro histórico de Mariana Luz mexendo as cadeiras?
JOAQUIM ARAÚJO: — Ahahahahahahahah! Corre aqui, Jucey!
GONÇALVES DIAS:
— Espanto-me com tamanha alegria,
Ao ver tantas senhoras a dançar,
Em louvor à Virgem Maria.
Se tem música boa, irei para lá!
JOAQUIM ARAÚJO: — Fica aqui, Manga Rosa, você não está vendo que lá só tem mulher!
LUIZ BANDEIRA: — Deixa ele, Quincas. O bendito é o fruto entre as mulheres. Vamos nos sentar ali, naquele banco.
CENA II
(Os dois vão sentar-se em um banco de cimento, no pátio externo do clube, enquanto Gonçalves Dias foi dançar com Mariana Luz e as legionárias. Os dois voltam a conversar sobre a política itapecuruense. Minutos depois, os dois poetas retornam.)
MARIANA LUZ: — Oh, dança boa! E ficou melhor porque eu dancei com meu poeta.
GONÇALVES DIAS:
— Muito boa festa desta Legião,
Apesar das outras fiéis ausentes;
Distintas cidades estão presentes.
Bendito seja este Encontrão!
LUIZ BANDEIRA (falando para Joaquim Araújo): — Eu nunca ouvi tanta rima pobre na minha vida e em um só dia. Eu acho que esse cara é um impostor. Esse negócio está estranho, nem parece o poeta dos Tymbiras. Ela não está percebendo isso?
JOAQUIM ARAÚJO: — Deve ter tido contato com esses poetas modernos que escrevem prosa e estruturam como se fosse poesia.
MARIANA LUZ: — Meu poeta maior, em novembro você será homenageado na festa literária de nossa cidade.
GONÇALVES DIAS:
— Sim, Mariana, fiquei feliz em saber.
Todavia, eu cá não estarei.
Vou à Inglaterra visitar o Rei,
Mas de Itapecuru não irei esquecer.
LUIZ BANDEIRA: — Bem feito! Centenas de pessoas para esse povo homenagear, como Dona Cotinha Lima, Maria José Preta, o Zé Jorge, o Francisco Cardoso, o Osman Coelho, a professora Antonieta e tantos que mereciam ser homenageados.
JOAQUIM ARAÚJO: — Pois é! Vai entender essas escolhas… É igual àqueles títulos de cidadão itapecuruense, que eu nunca entendi o critério da seleção de muitos que ganharam a homenagem. Mas fiquei sabendo que vão passar a fazer homenagem a quem realmente fez alguma coisa por Itapecuru e a História deixou na invisibilidade
MARIANA LUZ (olhando para Luiz Bandeira e Joaquim Araújo): — É uma pena, mas ficarei feliz em oferecer um café e declamar uns poemas que escrevi em sua homenagem. O que vocês acham?
LUIZ BANDEIRA: — Por mim, tudo bem!
JOAQUIM ARAÚJO: — Por mim, também. Ainda tem daqueles biscoitos de mesocarpo que a diretora daquela escola lhe deu?
LUIZ BANDEIRA: — Ahahahahahahah!
CENÁRIO III
Três dias depois, enquanto lia o jornal O Estado, Luiz Bandeira recebe uma carta de um amigo com a notícia de que, há mais de um mês, o grande poeta Gonçalves Dias está na Europa, em visita ao amigo, o matemático Gomes de Sousa.
CENA I
LUIZ BANDEIRA (pegando o chapéu e a carta): — Eu sabia que aquele cara era um impostor. Vou já falar com a Sianica e com o Quincas.
FIM
Samira Fonseca é formada em Língua Portuguesa e Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Tocantins, ocupante da cadeira n° 33 da Academia Vargem-Grandense de Letras e Artes.