Quinta, 17 de Julho de 2025
21°C 34°C
Itapecuru Mirim, MA
Publicidade

O HOMEM-CÃO LADRA À DEUSA-LUA

Arte, mística e o clamor do humano ao divino.

Theotônio Fonseca
Por: Theotônio Fonseca
16/07/2025 às 13h57
O HOMEM-CÃO LADRA À DEUSA-LUA
Imagem produzida com IA

O HOMEM-CÃO LADRA À DEUSA-LUA

Theotonio Fonseca

 

Continua após a publicidade
Anúncio

            Ao folhear um livro dedicado ao grande artista catalão Joan Miró, deparei-me com a obra Cão a ladrar à lua, um óleo sobre tela datado de 1926. O quadro suscitou-me uma reflexão duplamente subversiva às ortodoxias estreitas que dicotomizam seres, coisas e situações, amoldando os edifícios do pensamento e da realidade a formas e fôrmas, ignorando que há brechas, frestas e fechaduras por onde os raios do sol e os eflúvios lunares penetram, ainda que não sejam convidados. Minha abordagem ressignifica a imagética de Miró sob tessitura simbólica fora da ortodoxia, posto que animaliza o homem e feminiliza Deus.

 

https://www.philamuseum.org/collection/object/53949

Continua após a publicidade
Anúncio

 

            Compararmo-nos aos cães, em chave franciscana, seria revestirmo-nos da dignidade que habita e atravessa todas as criaturas — sendo o cão o melhor amigo do homem. Recordemos que, ao avistar Ulisses que regressava ao palácio de Ítaca, seu velho cão Argos morre subitamente, assaltado pela emoção do reencontro.

            Por outro lado, vermos Deus refletido na face da lua — Deus-mulher — não é algo inédito na tradição teológica, em que a dimensão materna da mística divina nos convida a chamar Deus de mãe. Particularmente, não creio que a identidade de gênero deva perpassar nossa compreensão do divino — nem o Senhor dos Exércitos (Yavé Sabaot), nem a Deusa Wicca. Imagino que Deus transcenda dualidades limitantes ou mesmo diversidades agregadoras e inclusivas.

Continua após a publicidade
Anúncio

            No contexto dialógico do encontro entre a imagem confeccionada por Miró e a reflexão teológica, imagino uma Deusa-lua, invocada por um homem-cão que ladra na longa madrugada de sua alma, no calabouço de sua íntima Babilônia, salmodiando e entretecendo versículos urdidos em silêncio sob a forma de latido — tessitura agônica de um pedido de socorro, ou redenção — túnica inconsútil de ecos, sussurros de um sofredor em sua peregrinação pelo vale de ossos secos. O homem-cão ladra de profundis, qual salmista coberto de cinzas e opróbrio. A resposta da Deusa-lua é o mesmo retumbante silêncio ao qual Blaise Pascal aludiu em seus Pensamentos.

            E se o homem-cão, vestindo a couraça da fé, acredita ter ouvido uma resposta da Deusa-lua, eis que a razão, repetindo Bilac, enuncia:

— Ora (direis) ouvir estrelas! Certo

Perdeste o senso!

 

            Mas o homem-cão, ainda que agrilhoado pela racionalidade cartesiana, sabe-se pertencente à alma do mundo. Sabe-se centelha do Criador, fagulha de divindade. E, mesmo sendo um cão, conheceu-se a si mesmo — e, conhecendo-se, passou a conhecer os deuses e o cosmos, tal como predicara o oráculo grego. E, mesmo sendo homem, não é superior aos outros seres do ecossistema universal. Sabe-se microcosmo que encerra, na urna de um invólucro mortal, a imensidão infinita do macrocosmo imortal. Sabe que, para além de dogmas religiosos e científicos, seus latidos — aparentemente estéreis — são respondidos pela via cardíaca de uma divindade que se quis manifestar nos doces e sutis acordes que acalentam o coração.

Theotonio Fonseca é professor, escritor e advogado. Foi membro consultivo da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, e atualmente compõe a Comissão de Advocacia Criminal da OAB/MA.

 

* O conteúdo de cada comentário é de responsabilidade de quem realizá-lo. Nos reservamos ao direito de reprovar ou eliminar comentários em desacordo com o propósito do site ou que contenham palavras ofensivas.
500 caracteres restantes.
Comentar
Mostrar mais comentários
Lenium - Criar site de notícias