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Palesa Pétala da Abissínia

Novo texto de Theotonio Fonseca

21/09/2021 às 05h52 Atualizada em 21/09/2021 às 06h29
Por: Redação Fonte: Por Theotônio Fonseca
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I

Prelúdio

Meu nome é Palesa, sou uma mulher preta e recordo os tempos idos de minha infância, quando à sombra das árvores frondosas sentia arder no peito a saudade de algo que não havia vivido, senão em sonhos febris quando acordava entre assaltos pesadelares e minha mão solícita me convidava a rezar, não sem antes benzer-me com um raminho de arruda, a saudade que sentia trazia ventos de outras terras, coloridos de um outro mundo e um imenso mar azul, oceano de expressão bela e aterradora separava aquelas visões de minhas brincadeiras de criança, por vezes meu ser era transportado para uma terra de Sol, onde areias cálidas e dromedários insones cruzavam grandiosas porções de terra.

Esse sentimento de saudade crescia dentro de mim à medida que o transcurso do tempo transformava-me de criança que mal sabia distinguir o fervilhar das próprias sensações íntimas, em uma mocinha, que descobre na biblioteca da escola livros que falavam da África, foi lendo essas narrativas e mitos que passei a sentir orgulho de minha cor e pude descobrir em páginas coloridas que o continente de onde meus ancestrais vieram era rico e diverso, possuía paisagens exuberantes e dezenas de línguas, culturas e religiões, soube também que havia reinos e que reis, príncipes e princesas foram para cá trazidos na degradante condição de escravos, submetidos a castigos, tortura e estupros, quando conseguiam cruzar o imenso oceano em infectos tumbeiros.

Aquelas narrativas fervilhavam em meu íntimo, marcavam minha alma, perturbavam meu espírito. Certo dia, ouvi ao cair da noite, o rufar de tambores que o vento trazia e aquele ritmo ora cadenciado, ora agitadamente executado envolveram meu ser como um chamado, o batuque se misturava às imagens de meus sonhos onde homens cantavam e dançavam ao redor de fogueiras sob o clarão da lua cheia.

Tomada pela curiosidade e excitação interior que aquela provocava em meu ser, mas, sabendo que meus pais não permitiriam que eu ainda adolescente saísse de casa para ir ao lugar que nem eu mesmo sabia onde ficava, conversei, no entanto, com minha mãe, e falei do que sentia, de meus sonhos e amores que sentia pela África, expressei que precisava entender aquilo e queria muito conhecer a riqueza de minha ancestralidade.

Ouvindo atentamente meu relato, Dona Venina começou a chorar e abraçando-me afirmara que eu tinha um dom e que ela se sentia orgulhosa por meu sincero interesse nas coisas de preto que ela também cultuava com discrição, foi aí que pela primeira vez descortinou-se para mim um universo que estava em minha casa e nunca desconfiara existir.

Pegando-me na mão gélida de apreensão, mamãe abriu a porta do quarto que sempre estava fechado e que diziam-me ser um depósito de coisas velhas que eu não deveria abrir, na verdade ali era o quarto de segredo, onde realizava suas obrigações religiosas do tambor de mina e uma vez por semana dava passagem aos seus guias.

O congá era belo, entre imagens e quadros de santos católicos, pretos velhos, rosários coloridos, uma vela que ardia e uma força que penetrava meu ser, ao entrar aquele pequeno santuário doméstico que se abria para mim, a doce voz de Dona Venina doutrinou:

Surrupira preto lá do poço de beber;

Surrupira preto lá do poço de beber;

Ele vê gente;

Gente não lhe vê;

Ele vê gente;

Gente não lhe vê.

O canto adentrou meu ouvido, penetrou minha alma, dominou meu ser inteiro, um sopro quente roçou minha nuca, bolei no santo.

II

Câmara ardente

Quando um ente querido morre, parte de nós parece fenecer com ele, uma dor entranha seus tentáculos em cada poro da alma, e a saudade baila sua dança de salão lúgubre, no salão da câmara ardente de nossa inteireza, nada escapa aos grilhões da perda de quem amamos, ver Dona Venina inerte naquele caixão, dias antes de completar sua septuagésima primavera, instalou um banzo em mim, que apenas o tempo poderia cicatrizar com a letargia de um restabelecimento afetivo quando se vivencia a experiência da morte no seio da família.

Foi mulher aguerrida, nasceu em um quilombo, e desde a idade mais tenra envolveu-se nas tradições de sua família, o tambor de crioula nas noites enluaradas quando louvaram São Benedito, o tambor de mina na casa de Nhá Maria dos Anjos, onde aos doze anos bolou e cantou para sua patroa, Vó Surrupira, que a acompanhou por toda a existência como um anjo da guarda que lhe injetava vigor quando as forças pareciam faltar e a tentação de desistir cortejava-lhe o ser.

Minha mãe saiu do quilombo para trabalhar em uma casa de família, era ali que pessoas abastadas de São Luís do Maranhão iam constantemente buscar jovenzinhas para laborarem em suas portentosas residências, o pretexto era ‘botar pra estudar’, ‘ajudar’, mas a realidade que perpassava essa escolha era ter mão de obra barata e submeter adolescentes recém saídas da infância a condições de servidão doméstica assemelhadas à escravidão que habitava as casas grandes do passado.

Confidenciou-me minha velha, tantas vezes, o banzo que a dominou quando entre lágrimas precisou deixar os seus, não poderia mais andar nas veredas do mato, banhar nos igarapés e satubas, andar descalça e ir ao terreiro de Nhá Maria dos Anjos ou à casa de Pai Anastácio, velho benzedor de quase cem anos, ouvir aquelas histórias de encantarias, os pontos dos caboclos, os relatos dos mineiros do passado que curavam, faziam partos e faziam trabalhos no campo para que a lavoura desse frutos e os animais não morressem, vítimas de picadas de cobras.

Sim, havia os rezadores que conversavam com as serpentes e as enviavam para longe da criação, a riqueza de todo esse convívio apunhalou minha pobre mãe, interditou a herança oral que da qual ela se apropriava na construção de uma subjetividade preta.

Deixar o quilombo e migrar para uma cidade desconhecida, para o seio de uma família branca sem que nem ao menos pudesse expor seu desejo de não ir, sem que pudesse escolher. Seus pais, lavradores humildades, não tiveram acesso à educação formal e mesmo sofrendo aos poucos foram deixando que suas seis filhas fossem sendo levadas, tão logo chegassem à puberdade, para essas casas ‘de família’, queriam que estudassem, recomendavam entre copiosas lágrimas que voltassem doutoras, chegando onde eles não puderam ir, e aportassem os sonhos no infinito, pois quem sonha com fé pode chegar em qualquer lugar. Meus pobres avós, sonhadores, soubessem dessa máquina de moer sonhos chamada racismo.

Tive cinco tias, apenas Dona Venina conseguiu realizar o desejo de seus genitores, tardiamente, como por vezes o é em relação aos pretos, que com dificuldades hercúleas conseguem romper as barreiras do preconceito e adentrar em uma universidade, minha mãe conseguiu a aprovação em uma universidade pública, tornou-se assistente social, mas não pôde celebrar com meus avós, eles já haviam partido para o orum.

III

Pétala de ébano

  – Palesa, preciso te dizer, não poderemos continuar juntos, lutei como pude para convencer meus pais de que as pessoas valem pelo caráter e não pela cor da pele, mas você sabe que o racismo é uma chaga na alma difícil de remover, me perdoe por desistir e não ter força para lutar por seu amor, tive que fazer uma escolha, mas desejo que você possa ser feliz, nunca te esquecerei.

Não foi fácil, ainda estudante secundarista ouvir essas palavras de Francisco, meu primeiro amor, líamos versos no Largo dos Amores, contemplávamos o mar e andávamos de mãos dadas no centro histórico, parecia eterno, o sentimento que pulsava em meu peito era forte e encantador, ele me falava sobre planos e família, filhos e viagens, seria médico como os pais, como quase todos em sua abastada prole, e nossos rebentos seriam como “ lindos como uma pétala de ébano”, assim ele me chamava, pétala de ébano.

Quando a família soube que a namorada do filho único era uma negra de família humildade, sem posses ou títulos de nobreza, sem sobrenome importante ou elevada condição social, a reação foi violenta e a exigência que o romance tivesse fim foi implacável, Francisco tentou, lutou por alguns meses, nos víamos às escondidas, já não podíamos juntos contemplar o mar nas areias cálidas das praias ludovicenses, eu que sempre dançava tambor de crioula em apresentações culturais no Reviver, já não o tinha na plateia batendo palmas, e meio sem jeito, tentando acompanhar o ritmo dos tambores.

Francisco se foi, levou no azul dos olhos uma cicatriz de amor, outro dia o vi em um shopping, estava com uma neta, reconheceu-me, o encontro foi breve, um cumprimento, um abraço, no azul dos olhos a cicatriz e uma lágrima, naquela pálida lágrima que sutilmente descera do olho cintilante as marcas de um passado que ficou para trás, mas continua habitando algum recanto do íntimo. 

“ Pétala de ébano”, era bom ouvir-lhe os versos, mas o vento levou consigo a pétala que não pôde florescer em botão de rosa, a pétala que não pôde revestir-se dos sândalos olentes da felicidade, pétala ceifada tão prematuramente em seu desejo de brilhar.

A pétala que murchou, para renascer mais forte, não pétala desbotada, mas roseira inteira na plenitude de ser mulher, mulher preta, de ashé e perseverança, uma roseira banhada em resistência nas cascatas de Oxum, no jardim da vida fui pétala singela, hoje sou roseira urdida em fogo e tempestade.

IV

Vestígios de Venina e memórias conjugais

A morte de minha mãe me fez refletir sobre a finitude das coisas, que efêmeras passam como as estações, mas os vestígios do que semeamos permanecem como sementes à procura de um solo onde possam germinar, minha mãe não apenas realizara a semeadura, mas arou a terra e pôde em vida colher os frutos, eu e meu irmão nos formamos, meus primos tão motivados por ela também, e quando as adversidades pareciam ditar a ordem natural da vida na ampulheta de sucessões de problemas era ela com seu maracá, seu raminho de arruda, seus banhos e sakulupembas que socorria a família com sua irradiante espiritualidade

Quando de conselhos se precisava, sua patroa, Vó Surrupira, dava passagem à sabia preta velha que ela recebia, Vovó Cambinda com seu cachimbo de angico e sua cuia de café amargo nos orientava, com sábias palavras nos mostrava o caminho e antes de subir doutrinava:

Vovó já vai,

Já vai pra Aruanda,

Abenção vovó,

Proteção pra nossa banda.

Não tive filhos a quem pudesse transmitir o legado familiar de afeto que recebi de Dona Malvina, as obras do coração parecem tão fugazes quanto o espaço entre a alvorada e o crepúsculo, e o que parece transcender o tempo, revela-se escorregadio até perder-se em desencanto.

O primeiro casamento dotou cinco anos, nos dois primeiros o entusiasmo e a alegria ditavam o ritmo da felicidade, mas no terceiro as cobranças por um filho iniciaram, vieram os tratamentos, debalde eu não poderia gerar, logo eu tão devota à maternidade, chorei, adentrei o vale da depressão, briguei com Oxum, magoei-me com Iemanjá, o marido já não me amava, e não amando-me, deixou-me à procura de um ventre fértil que pudesse fecundar com prole numerosa como sempre quis, eu era jovem, casei-me ao adentrar a faculdade de Direito, e ele com quase quarenta anos e sem herdeiros, tinha um desejo imenso de ser pai. 

Na semana de minha formatura, recebi como presente ao chegar em casa, uma carta sobre a mesa comunicando que ele havia ido embora, o guarda-roupa vazio, ele havia partido, eu havia sido aprovada em um concurso público, já possuía um trabalho, ao ler a imensa epístola de várias laudas de lamúrias e desabafos certifiquei-me que aquele homem com quem dividi a companhia por cinco anos, vitimando-se na verdade nunca pensara em mim, mas tão somente no incontido anseio de ser pai.

A culpa era minha, não tive fé suficiente para mover a montanha da infertilidade, em vez de rezar aos santos católicos, preferia acreditar em outros deuses, aquele homem que se dizia encantado pela África, que rasgava elogios à cultura do meu povo mostrava sua verdadeira face, o que lhe habitava por debaixo da pele das palavras que a língua falsa proclamara por anos em arroubos de paixão. 

Quando concluí aquela deprimente catilinária, ao contrário de que se possa imaginar, não chorei, já havia desaguado toda a reserva de pranto possível de ser vertida, ao longo dos últimos três anos nos quais tentei engravidar, ao ler a última frase da carta comecei a sorrir, um fardo havia sido retirado de sobre os ombros de minha existência, eu tinha uma vitrola e alguns discos antigos, dentre os quais retirei o “ Terreiro, sala e salão” de Martinho da Vila, comecei a sambar e a terceira canção do excelente repertório marcou o compasso do que eu sentia, da liberdade que me invadia: Vai com Deus, vai / Vai com Deus, vai/ Vai com Deus, vai/ Que lá fora o sereno cai / Vai com São Benedito / Vai com Santo Onofre/ Com Nossa Senhora Aparecida / Que a farra tá boa/ Mas já tá na hora / Dos que acordam cedo / Pra ganhar a vida.

A morte reduz reis e guerreiros a corpos inertes, assim como a doença transmuda os fortes em moribundos, ciclos que compõem a mecânica do tempo que passa e vai devorando em sorvedouro tudo ao seu redor, ver minha mãe morta na câmara ardente do velório que parecia não terminar, me fez revisitar o dia em que a guerreira quilombola adentrou a escola particular em que eu era a única criança preta em uma sala de crianças brancas, onde um dia antes a professora havia chamado-me de cabelinho de Bombril.

Os colegas sorriram, ganhei um apelido, chorei, mas minha Venina com as armas da resistência em punho, fez um discurso tão pujante na sala da diretoria que a jovem professora racista, envergonhada da escória que lhe habitava as vísceras do caráter, pediu demissão antes mesmo que a direção adotasse as medidas que desejasse, saiu dali cabisbaixa e minha rainha preta empoderada levou-me à sala de aula para assistir o segundo horário.

Foi uma baita lição, a escola discutiu o tema e antes que se falasse em letramento antirracista ou algo similar, aquela escola começou a discutir racismo e falar sobre cultura negra, timidamente, mas foi um passo, e quem foi a primeira palestrante a falar sobre isso para uma plateia de pais e mães brancos em uma palestra no dia 13 de maio? 

Sim, minha velha, Dona Venina, a menina do quilombo que se formou em Serviço Social na Universidade Federal do Maranhão, decerto que do orum meus avós aplaudiam, reminiscências que a morte e o tempo não desdouram das páginas vivas da memória. Minha mãe também foi roseira florida, urdida em fogo e tempestade, temperada em dendê no fogão de barro das adversidades que não apagam a chama de quem persegue o rastro dos sonhos.

V

Vestígios de Venina

Venina chegou em São Luís do Maranhão com um imenso banzo a arder em seu peito, choramingava por dentro, gemidos da alma que somente Deus poderia perscrutar, a família do desembargador constituía-se de um casal de filhos e a esposa, mulher de porte aristocrático, elegante, estudara no tradicional Colégio Santa Tereza e era conhecida por sua catolicidade, naquele sobrado de família no centro, de onde anos depois se mudaram para um apartamento no Renascença, rezava-se às seis horas da manhã, às quinze horas da tarde, às dezoito horas e antes de dormir, Dona Carmela tinha sempre à mão um rosário e a liturgia das horas.

Velas ardiam o dia inteiro nas diversas capelinhas domésticas espalhadas na casa, imagens antigas, santos de roca, ícones bizantinos e alguma estatuária sacra barroca; aquela casa imensa, de grossas paredes e grades de ferro, exalava religiosidade, mas de parca vivacidade e verdum, também estava enevoada de espectros de um passado distante, quando os ancestrais daquele casal tinham seus negócios na  Praia Grande, sua escravaria e seus privilégios, a casa exalava na parafina que ardia uma dimensão estática da vida que os pés descalços e a liberdade nos alagadiços e matas do quilombo desconheciam. 

Ao passar a residir com aquela família, Venina era iniciada em outro mundo, um universo de paralisia e bolor, convivia com descendentes de escravagistas e ela descendente de escravizados reproduzia sob novas condições na pele preta e no exaustivo trabalho serviçal, o que as mucamas que a antecederam fizeram.

Venina não se sentiu bem em sua primeira noite em um quarto penumbroso da edificação, a saudade era muito grande e ela chorou copiosamente, queria estar próximo aos pais, aos irmãos, mas tinha que estudar e vencer, fazer esse sacrifício para ser doutora e dar orgulho à sua família que não tivera oportunidades, resolveu dali por diante ser forte, não sucumbir à tristeza e fazer de cada obstáculo combustível para lutar.

Naquela madrugada gelada em que uma chuva torrencial lavava as escadarias da Catedral da Sé e as ruas desertas do velho centro da cidade, uma adolescente preta optou por resistir, em seu íntimo repinicaram os dobrados e corridos do terreiro de Nhá Maria dos Anjos e na cadência da gira interior de encantados que povoavam sua alma, ela dormiu!

Não sabia que seu vodum lhe acariciava o ori com o refrigério de um sopro de paz, acalanto sem canto, ninar sem canção para um boa noite de sono. Venina não acordaria a mesma, ao levantar para trabalhar, carregaria consigo a fortaleza de um ideal.

VI

Da universidade à vida profissional

Meu nome é Palesa, sou uma mulher preta, e vendo naquela parede do campus da UFMA meu nome figurando entre os aprovados para o concorrido curso de Direito, eu ainda aos dezessete anos, tendo trilhado o caminho dos estudos entre os percalços de dificuldades, apesar da dedicação de minha mãe para que eu tivesse as melhores oportunidades.

Por que Direito? Meu desejo era contribuir com as causas sociais, contribuir para a justiça e garantia dos direitos dos oprimidos e marginalizados, foi com esses elevados ideais urdidos em sonho e revolução que optei pelo curso. O transcurso do tempo nos vai ensinando que nem as estruturas de morte, opressão e manutenção de privilégios dos estamentos, tem no universo forense um de seus bastiões. 

Aos poucos fui percebendo a hipocrisia, os fios de inverdades que tecem a túnica púrpura das instituições republicanas de um país erigido sobre séculos de escravidão, a túnica escarlate do sangue dos escravizados e povos indígenas dizimados é a veste talar que colada à epiderme do país, revela o quanto precisamos crescer para construir uma democracia plena.

Havia poucos afrodescendentes na Universidade em minha época de estudante, sobretudo, no curso que optei por fazer, a quase homogeneidade étnica de cursos tradicionais como Medicina e Direito não refletia a diversidade constitutiva da sociedade maranhense com tantos pretos, indígenas e mestiços.

Minhas reflexões se aprofundaram ao perceber que meus irmãos não estavam ao meu lado estudando ou a exercer a cátedra, mas relevados à subalternidade, invizibilizados em funções como cantina, serviços gerais, vigilância. A face do racismo que hoje sei estrutural se desvelava para mim na pujança dos exemplos que grassam em cada recanto da sociedade.

Tudo aquilo era combustível para que eu superando quaisquer óbices brilhasse e assim destaquei-me como aluna aplicada, elogiada pelos professores e pelos colegas de turma, devotada à filosofia lia Deleuze, Foucault, Dostoievski, dentre tantos autores, e minhas intervenções nas aulas ou trabalhos escritos traziam consigo a marca da erudição e do beletrismo.

  Eu adentrava as madrugadas a ler e estudar, matriculada nos cursos de alemão e francês queria penetrar os originais dos clássicos que lia, queria citá-los no original, mostrar familiaridade com o pensamento jus filosófico e isso me elevou rapidamente ao destaque da turma.

Em um congresso de Direito Internacional fui escolhida para compor uma mesa redonda com professores da USP, eu ainda aluna do quinto período de Direito, apresentei meu trabalho sobre tutela internacional dos direitos humanos, o trabalho posteriormente foi publicado em um importante periódico, mas naquela tarde ao terminar de ler o trabalho com citações em francês, inglês e alemão e sendo ovacionada com palmas e receber o elogio e um abraço dos mestres que compartilhavam aquela mesa de discussão acadêmica, eu senti a alegria de uma vitória conquistada.

Na plateia, entre lágrimas de alegria, minha mão por certo era visitada por lembranças de um passado sofrido e a felicidade de contemplar os frutos luminosos de sua doação materna.

O sucesso na academia contrastava com as crises no casamento que iniciavam, meu marido começava a cobrar um filho, iniciaria àquela época minha via crucis que perdurou até a antevéspera de minha formatura, mas também foi naquele torvelinho, entre as conquistas acadêmicas públicas e o início do desencanto afetivo privado que pude me apropriar de uma vitória que selou meus esforços, representando o selo de minha autonomia financeira.

Fui aprovada em um concurso público, teria a partir dali uma renda que me permitiria viver com mais dignidade e construir minha trajetória profissional, poucos anos depois, pedi exoneração e em sociedade com amigos do curso estruturamos um escritório de advocacia, eles de abastadas famílias investiram em um belíssimo espaço, e eu com meu conhecimento jurídico, iniciei ao lado deles a história de uma banca que consolidou-se no mercado ludovicense como referência de profissionalismo e eficiência

Eu, Dra. Palesa Mendes Nascimento, mulher preta e de ashé, já era exemplo para jovens advogadas negras, era uma sobrevivente na selva de correntes que ainda aprisionava meu povo, vítima da violência policial, do racismo religioso, da exclusão e marginalidade.

Eu sobrevivi, e ao ministrar palestras em escolas de ensino fundamental e médio ou participar, de conferências e seminários que tangenciavam essas temáticas, eu me vestia com as armas de um discurso eivado de resistência e revolução, para defender os direitos de todos aqueles que sofrem na pele e na alma as vergastadas do necropoder que perpassa cada artéria institucional e social deste país, organismo vivo adoecido pela herança funesta de séculos de escravidão e genocídio.

VII

Zequinha, meu desafortunado irmão

Um pássaro vivia infeliz, aprisionado em uma gaiola não podia voar com liberdade na floresta onde nasceu, seu canto era um lamento de dor e saudade do tempo em que livre realizava suas andanças pelas árvores, o dono ao vê-lo cantar nas manhãs se alegrava achando que a canção era uma saudação ao dia, ledo engano de todos os passarinheiros é pensar que o pássaro canta na gaiola feliz, se pudessem traduzir para a linguagem humana os lamentos que constituem suas cantilenas, decerto que aqueles que possuem sentimentos humanos os libertariam de suas pequenas masmorras. Um pássaro preso é um pedaço da criação acrisolada que deveria abrilhantar o mundo com o exercício de sua liberdade.

Zequinha foi um pássaro de ébano, negro e lindo, seu canto na curimba do terreiro encantava os que participavam do tambor, seu canto no grupo de pagode do bairro embalava as noites, seu grito lancinante e derradeiro sob o coturno dos policiais torturadores que confundindo - o com um assaltante quando meu pobre irmão voltava para casa após um tributo ao dia nacional do samba, seu grito de dor ecoa até hoje em minha memória, dilacera-me a lembrança e suscita revolta.

Penso em seus derradeiros momentos de vida, na súplica por piedade e misericórdia e na frustrada tentativa de aclarar o mal-entendido. Não havia diálogo possível naquela madrugada entre um descendente de escravos e o necroestado, legatário do ódio institucional que assinala o Estado Brasileiro.

  – Cadê o dinheiro desgraçado, eu vou te matar preto infeliz.

– Eu sou um trabalhador, pelo amor de Deus vocês estão me confundindo, meus documentos estão no bolso.

  –  Seu vagabundo da desgraça tu vai morrer hoje mentiroso.

Meu desafortunado irmãozinho, na manhã seguinte ao seu suplicio quando nos ligaram do IML para que fossemos reconhecer o corpo, nós já tensas por não teres voltado para casa, naquela manhã de chumbo, avinagrada por aquele telefonema cruel eu sei que parte de mim falecia contigo, mas sei também que a longa dor e depressão que marcou os últimos anos de vida de nossa mãezinha iniciaram naquela manhã, ela não foi mais a mesma, como poderia sê-lo após ver-te o corpo destruído, violado pelo Estado, imolado no altar das horrendas estatísticas do genocídio do negro brasileiro.

No velório de minha mãe eu recordei os ritos fúnebres de meu irmão, como espiral de recordações eu sucumbi no redemoinho de sensações lúgubres e a melancolia como ferro em brasas habitou-me as retinas da alma. A morte fazia parte de minha existência e perder Dona Venina e Zequinha foram as ocasiões vivenciais em que também soterrei em um barranco de dor partes de mim, assim como a divindade egípcia que teve o corpo esquartejado e espalhado pelos rincões do mundo, essas perdas desmembraram meu ser, em cada perda uma parte de mim foi arrancada.

No tambor de choro de Zequinha, Vó Surrupira desceu, triste com a morte do afilhado jurou vingar seu perecimento, foram três os assassinos, ela o sabia, pagariam o preço, porém, seu cavalo precisava de cuidado e atenção, não seria mais a mesma pessoa, viveria entre o mundo real e o mundo das sombras, as sombras do banzo e o banzo que a acompanhava não a deixaria mais, ouvimos com imenso pesar aquelas palavras, a encantada era sincera e sábia, não dizia nada que não correspondesse à verdade.

Vó Surrupira subiu e o tambor de choro continuou, passaram-se dois meses e ao abrir o Jornal Estado do Maranhão uma notícia chamou a atenção de minha mãe: “Três policiais morrem em confronto com assaltantes de banco em tiroteio na região metropolitana de São Luís”, eram eles, os verdugos, os algozes que sacrificaram Zequinha ao deus porco do Necroestado racista, no cadafalso de uma madrugada.

Eles morreram, mas sua morte não traria meu irmão de volta, pois naquele momento em algum recanto desse país um outro jovem negro estava sendo ou seria morto pela polícia com requintes de crueldade, no sorvedouro de tragédias brasileiras meu pássaro de ébano foi mais uma vítima do laço do passarinheiro.

VIII

Fragmentos de um diário íntimo

25/12/...

(...) me sinto tão sozinha nesse natal, regressar para casa após uma confraternização tão festiva, meu sorriso, minha felicidade, tudo agora é distante, entre os lenções da solidão, pensei por vezes que a solidão da mulher negra era uma manifestação de vitimismo, sim, achava que certas pautas do movimento não tinham fundamento na realidade concreta e a solidão tinha a ver mais com uma condição contemporânea do ser humano, marcado pela liquidez que Bauman discute em suas obras e não necessariamente relacionada à condição étnica da pessoa, naquela noite de natal, sozinha entre os lençóis, eu percebi que o estava só, bem sucedida e independente, os relacionamentos que tive até então, desde que me divorciei ainda jovem, não eram duradouros e sucumbiam ao fim quando a possibilidade de evoluir para um casamento ou união estável se apresentava (...)

13/ 05/...

(...) tambor de crioula na praça da Faustina, noite enluarada, sem nuvens de chuva, muita gente vendo as marchas de batuque, cheguei cansada de uma audiência, peguei minhas fardas e desci para o Reviver, penso que apesar de ressignificarmos nossa resistência a partir da adoção do 20 de novembro, o 13 de maio pode sim ser celebrado, não como oportunidade de louvar a Princesa Isabel, mas como possibilidade de nos congraçarmos em torno de nossa própria caminhada na resistência dos aquilombados, dos negros fujões do passado.

A assinatura da lei áurea não assegurou direitos, não devolveu dignidade, não inaugurou um novo tempo, mas foi importante sob o aspecto jurídico e celebrar o 13 de maio em minha compreensão é celebrar nossos irmãos que tombaram defendendo essa causa, os abolicionistas, os sacerdotes e sacerdotisas, os terreiros, não precisamos lembrar a princesa, pois temos as nossas, como Dandara dos Palmares. (...)

15/ 02/...

(...) Queria saber desenhar, pintar quadros, se existe um talento que invejo é quem sabe transpor para uma tela ou uma folha em branco as imagens de seus sentimento, a natureza e as coisas, as paisagens geográficas e as paisagens interiores, é mágico quando o lápis ou o pincel vão dando forma à imaginação, tem algo divino nisso. 

Quando presencio um artista produzindo, imagino que ao criar o mundo Olorum deve ter inicialmente criado estudos, esboços coloridos de como a criação seria, depois se pôs a produzir o universo criado na aquarela do espaço em braço. Foi o que senti ao ir contemplar as pinturas de Abdias Nascimento em uma exposição em Salvador, Bahia.

Ao ver a belíssima “ Bastideana nº 3: Ponto riscado de Exu cruzado com Xangô”, eu recordei da força cabalística de algumas pinturas de artistas haitianos pertencentes ao vodu e ao contemplar o colorido exuberante das “ Borboletas de Franca” recordei o mato multicor do quilombo de minha mãe. (...)

27/08/...

(...). Sinto um refrigério na alma quando escuto Maria Betânia, Clara Nunes e Elza Soares, cada uma com seu estilo, em Betânia admiro a força da voz, a poesia do repertório e o romantismo que imprime em tudo que canta; em Clara é a dança e pujança, a magia e o encanto, sua beleza irradia felicidade e suas canções parecem exprimir o que de melhor existe em nosso país, ela parece encerrar a potência de nossa civilização mestiça.

  Por fim, Elza é um ciclone de potencialidades que vai arrastando no torvelinho de seu cantar as nossas tristezas e frustrações, ela me alegra, pois tem a realeza de uma mulher preta que sofreu adversidades variadas na vida, mas transformou cada espinho em pétala de samba. 

Antes de repousar, eu gosto de escutar uma dessas três divas, mas também as ouço quando produzo minhas petições e quando dirijo, acho que as divindades se manifestam através da voz dos que traduzem o sublime, através da arte de entoar canções. (...)

31/12/...

Mais um ano encerra, ao fazer uma retrospectiva do que vivi, as experiências me mostram que sou mais forte e destemida na perseguição dos ideais, não aceitei acordos que ao final seriam ruins aos meus clientes, orientei-os de que ao final poderíamos vencer e assim foi feito, vencemos e ganhei musculatura profissional para não temer a derrota, nem que do outro lado da demanda estivesse a melhor banca de advocacia do mundo a patrocinar a outra parte, minha prática forense além de altamente especializada, se fez aguerrida desse ano em diante. Comprei um lindo vestido branco, irei à Praia do Olho D’água fazer oferenda a Iemanjá, agradecer as bênçãos do ano que finda e pedir a renovação destas no que inicia, que possa a rainha do mar levar para as profundezas do oceano todas as energias negativas e derramar sobre mim o ashé que alimenta a alma. Odoyá! (...) 

15/09/...

Uma princesa africana foi trazida como escrava no porão de um navio negreiro, ao chegar ao pelourinho foi vendida para um senhor de engenho reconhecido como exemplo de carrasco. Cruel e castigador, seus escravos tinham expectativa de vida menor que a já curta expectativa dos que viviam a tragédia do cativeiro.

Sádico, pervertido, estuprava as mulheres e por prazer doentio colocava vez por outra, sem justificativa, homens no tronco para apanharem, de suas glebas ninguém fugia, para seus latifúndios ninguém queria ir, era um demônio encarnado sob a forma humana.

Foi para aquela antessala do inferno que a princesa foi levada, seus voduns sopraram em seus ouvidos os infortúnios que poderia passar, mas ela, não era apenas de um clã real do reino de Daomé, era também guardiã dos mistérios da espiritualidade de seu povo. Filha de Sogbô, conhecia os encantamentos da cura e as ervas de matar, conjurava forças da natureza e comunicava-se com as serpentes.

Naquela noite foi trancafiada em um celeiro sujo nas adjacências da Casa Grande, era li, entre arreios, celas de cavalos e instrumentos da lavoura que os escravos utilizavam, ali no chão empoeirado coberto de feno, ele violava as escravizadas recém-chegadas.

  A princesa sabia de suas intenções, sua divindade advertira-lhe e com uma invocação às potências naturais, a mulher de sangue real começou a cantar na língua fon, conjurando a força da chuva e o poder da tempestade.

Não tardou para que um temporal caísse sobre a fazenda, as três mafumeiras próximas à Casa Grande rangiam como a prenunciar partir-se, na senzala os escravizados de etnias e línguas diversas sabiam que aquela tempestade tinha o toque de uma poderosa divindade africana e rezavam aos seus panteões para que os protegesse. 

O senhor de engenho sem se deixar intimidar pelo vento e pela chuva, deixou a esposa e filhos recolhidos, rezando na capela doméstica da família e vestindo uma velha capa de chuva que pertenceu ao seu pai, saiu de casa, estava revoltado com o torrencial que arruinaria sua plantação, mas descontaria todo o ódio que naquele momento sentia de Deus, naquela negra africana que devia de ter trazido consigo o agouro e a maldição, ele a usaria a noite toda e quando o dia nascesse a enforcaria na mafumeira.

O homem caminhava com dificuldade na chuva, compelido pelo vento que parecia querer afastá-lo daquele celeiro, ele resiste e lutava contra as forças da natureza, em suas visões a princesa o via em sua sanha mórbida, sua senhora Nochê Sogbô aguardava seu consentimento para selar o destino do verdugo e com um verso, um trecho de um poema oral sobre a destruição de tribos inimigas, a princesa autorizou seu vodum, senhora das raios que com a destreza de Oxossi, o caçador de uma só flecha, fulminou o carrasco com um grande raio.(...) 

(...)Bem que meus colegas de turma diziam que eu possuía talento para escrever, será? Não mostrarei a ninguém, continuarei tentando, quem sabe um dia eu resolva publicar algo (...)

17/06/...

(...). Nosso primeiro beijo foi doce como o mel, parece piegas, sei que essa frase já foi dita por tantos, mas em meu diário pessoal que nunca irá a prelo, posso me expressar como desejo, sem preocupações de natureza literária na busca de um estilo. 

Preciso encontrar expressões que se aproximem da realidade vivida e quando eu e Lauro nos beijamos foi mágico, ele era devotado às artes, assim como eu, tudo nele respirava poesia, assim como em mim tudo era encanto, atrás do véu da advogada aguerrida habitava uma artista sensível. Assim, tudo que nos envolvia era embalado pela cadência do sentimento e um beijo selou o namoro platônico que já nos consorciava na antessala da paixão.

Lauro era negro como eu, serventuário da justiça, nos conhecemos na labuta diária forense, engajado no movimento negro, dançou no bloco GDAM e sempre estava presente em manifestações artísticas, culturais ou acadêmicas que envolvesse a igualdade racial. 

Não recordo bem como começamos a conversar com frequência, o diálogo inicial que inaugurou nossa história, a verdade é que seu conhecimento me cativou, seus olhos me aprisionaram, seu sorriso me acrisolou na graça de seu brilho e me apaixonei por um cavaleiro de ébano que montado no dorso de sua ancestralidade, portava o escudo do pertencimento e a espada do ashé... 

Lauro era belo como um príncipe de um reino africano, sua pele reluzia a luz ancestre do chão de nossos ancestrais, sua força e músculos tinham o vigor de um guerreiro zulu, Shaka Zulu. Assim como os intrépidos homens que defendendo a fronteira de suas tribos encampam batalhas encaniçadas e voltam envoltos no linho da honra de tombar lutando pelos seus ou nem regressam, mas insepultos a céu aberto nos arraiais embebidos em sangue são velados pelo bico dos corvos, assim como os que partem para sucumbir aos caprichos das fiandeiras do destino que lhes cortam o fio da vida, Lauro partiu para um congresso em São Paulo, onde proferiria uma palestra sobre a obra de Maria Firmina dos Reis que começava a ganhar repercussão na academia do Sudeste do país, nossa grande e pioneira romancista preta da Literatura Brasileira.

O congresso iniciaria dois dias após sua chegada à cidade, ele chegara antes para visitar alguns amigos e familiares, em uma dessas visitas, a um amigo de infância que residia em uma favela, Lauro tombou, vítima de  um projétil em um tiroteio entre traficantes e policiais militares, foi tudo repentino, ele conversava em um esquina com seu estimado João dos Santos, parceiro de brincadeiras no quilombo São Simão em Rosário, Maranhão, João, o menino do quilombo que cursava mestrado em Ciências Sociais na USP e produzia uma dissertação sobre os impactos do genocídio dos jovens negros na periferia na desagregação familiar, com o amigo ensanguentado nos braços, chorou os derradeiros suspiros de mais um jovem negro que tombava, entraria nas estatísticas que ele compulsava em suas pesquisas.

Quando o telefone tocou e eu soube que Lauro estava morto, abatido como a caça que tomba pela flecha do caçador, meu ser se revestiu de luto e desespero, dor e revolta, a flecha que o abateu saiu do alforge da polícia conforme depois a perícia constatou, o braço sedento de sangue preto do Necroestado genocida. 

Perdi meu Shaka Zulu, meu guerreiro, a dissertação de João dos Santos ganhou uma dedicatória, uma plangente manifestação de banzo a mais um que morrera, pois “a cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo”, como diz o rap.

 

“ Laurinho, meu irmão do quilombo, negro educado demais, inteligente pra caramba, que belo sorriso, que gingado na capoeira, que sensualidade ao sambar, essa dissertação é pra ti nego, aí no orum onde não tem polícia que mata preto, senzala ou favelas, grilhões ou tumbeiros, eu passo a bola da esperança pra ti meu atacante do campinho de São Simão, mata no peito e faz esse gol, meu irmão, meu amigo, meu ancestral. ” 

IX

Vestígios de Venina

Os vestígios de Dona Venina se espraiam em minha existência, como o aroma de um jasmineiro que não vemos, posto que se abriga do outro lado do muro, mas sabemos que ele está ali e quando o vento acaricia seus galhos e folhas, seu cheiro evola pelos ares e brinda nosso labirinto olfativo com prelúdios da eternidade.

Minha mãe foi exemplo, lutou para conquistar em espaço na universidade, no mercado de trabalho, mãe solteira, preta, pobre, em uma sociedade estruturalmente racista, sua fé inabalável nos orixás, os guias que a possuíam na gira ou na mesa sempre a iluminaram com o discernimento diante das agruras da vida.

Minha mãe experienciou em minha gestação, o abandono e a solidão, meu genitor, um homem negro de outro estado, sociólogo e fotógrafo engajado nas lutas sociais, conheceu minha mãe em um encontro na universidade, ficou aqui alguns meses, período em que fui gestada, mas tão logo soube que um rebento crescia naquele ventre, o homem negro reproduziu o discurso que muitos brancos enunciam quando sabem que a empregada ou amante preta está grávida, sugeriu um aborto.

Dona Venina inconsolável o deixou ali, sentado na Praça Deodoro e desfazendo-se em pranto em uma noite enluarada de agosto, desceu a Rua Grande em direção ao terminal da Praia Grande, ele ficou parado, não a procurou, não a quis consolar, dias depois sumiu como um espectro que passa por nós na penumbra da noite e não o vemos mais, posto que fantasmagórico e fugaz se esfumaça no tempo como uma baforada do cachimbo de preto velho.

Minha mãe sofreu as agruras de uma gestação em casa de família, sofreu preconceitos, comentários maldosos e o olhar de nojo e asco de seus patrões, mas tão rápido quanto a fumaça que sai do cachimbo de um preto velho se desfaz no tempo, o amor romântico que sentia por meu pai se desfez.

Antes que eu nascesse ela foi aprovada em um concurso público, antes que eu começasse a andar, formara-se na universidade, antes que balbuciasse os primeiros vocábulos, ela soube que meu pai se casara em sua cidade natal com uma mulher branca de quem era noivo há dois anos.

 

X

Fragmentos de um diário íntimo

20/11/...

20 de Novembro, dia de festejar e refletir, teremos obrigação no terreiro pela manhã, à tarde proferirei uma palestra em uma faculdade privada, sobre políticas de promoção da Igualdade Racial, e à noite darei uma volta pelo Reviver para as apresentações culturais que sempre me encantam, ainda me recupero de um procedimento cirúrgico, não tenho condições físicas de dançar o maravilhoso tambor no grupo que faço parte como coreira, mas poderei ficar por algum tempo e aproveitar um pouco a noite de celebração, antes, no entanto, de sair de casa, quero registrar breves linhas acerca de aspecto que permeiam minha atuação na advocacia, a partir do olhar que forjei com a consciência construída sob o alicerce de tantas leituras.

  As lides forenses escancaram a face do racismo estrutural que está enraizado institucionalmente, inclusive no poder judiciário, muito embora a quantidade de advogados e advogadas pretas hoje seja infinitamente superior àquele reduzido número de outrora ainda podemos ver na face humilde, nas roupas por vezes rotas e na desproporcionalidade de tantas sentenças e decisões quando o réu é branco ou é preto, recordo quando de minha primeira visita ao Complexo Penitenciário de Pedrinhas, acompanhando um professor na disciplina de Estágio, eu pude ver naquele sistema prisional, verdadeira masmorra medieva, a personificação contemporânea de um tumbeiro ou de uma favela, sei que essa associação não carrega a marca da originalidade, pois muitos rappers ou poetas antes de mim já perceberam essa trágica semelhança.

O encarceramento em massa da população preta é sem dúvida parte de um projeto genocida de destruição de meu povo encetada pelo próprio Estado, ao ler a célebre obra “ A nova segregação: Racismo e Encarceramento em Massa” de Michele Alexander, compreendi a sofisticada dinâmica do novo Jim Crow que nos Estados Unidos, assim como aqui e a despeito de diferenças ensejam em estatísticas já denunciadas na década de 1970 por Abdias do Nascimento, “ O Genocídio do Negro brasileiro: processo de um racismo mascarado”,

Esse clássico que li na faculdade e experienciei na defesa de tantos clientes e famílias que perderam os seu vitimados pela violência policial e pela omissão do Estado, seja em uma assistência médico-hospitalar precária  que sacrifica o pobre, mas, sobretudo, o pobre preto ou através da ausência de políticas públicas para a juventude, que sofre em seus anseios por qualidade de vida, emprego, cultura e acesso a oportunidades de ensino, os jovens são ovelhas jogadas no sorvedouro da  máquina de moer carne chamada sistema.

Li um poema chamado “ Máquina de Moer carne”, é assim que concebo o Estado Brasileiro, mas os moleiros, os donos do poder, apreciam usar a mó para triturar os grãos específicos de pele preta, são estes os que são reduzidos a pó pelas engrenagens das estruturas de morte que cada jurista aguerrido (a) como eu precisam lutar para destruir. Viva o Dia da Consciência Negra, que a ancestralidade me conceda o ashé necessário para superar os desafios que impõem ao longo da jornada no Àiyé.

XI

A aprendiz de escritora que me habita

O desejo de ser escritora surgiu ainda na infância, as narrativas que minha mãe lia antes que o sono noturno me dominasse povoaram desde cedo meu universo com tantos seres mitológicos, personagens históricos, príncipes e princesas, àquela época havia poucos livros que explorassem a mitologia ioruba e a cultura afro-brasileira, não havendo um catálogo sólido de obras que contemplassem minha ancestralidade e mesmo autores e autoras negras ainda eram invizibilizados pela seletividade de editoras que não os valorizavam, a seleção era clara e entre poucas mulheres lidas como Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector, clássicos inarredáveis de nossas letras, predominavam homens brancos e burgueses.

Escritores negros eram raríssimos entre nós, havia muitos, mas não eram valorizados, enquanto o mundo se curvava ao talento de Chinua Achebe, Wole Soyinka, Derek Walcot e escritoras negras como Toni Morrison, nós nem sabíamos o valor de Maria Firmina dos Reis ou Carolina Maria de Jesus.

Esse cenário me fez escrever diários íntimos onde passei a registrar meus contos, crônicas, poemas e fragmentos de romances, centenas deles dispersos e esparsos entre memórias individuais de momentos que passei ao longo da jornada. 

Nada do que vivi foi ignorado por meus diários, mesmo as inalcançáveis experiências intrauterinas foram reconstruídas com o toque imaginoso da elaboração ficcional e mesmo as experiências vividas foram retocadas com a tinta do artístico e a pena do mimético desejo de recriar as coisas com a verossimilhança que a arte literária permitem confeccionar.

Lendo vorazmente, construí um arcabouço de referências plurais, primeiro veio a mitologia grega e romana e os clássicos da Literatura Brasileira, depois vieram os autores estrangeiros, a bíblia, as obras de filosofia e antropologia, se a poesia sempre me cativou, as narrativas bíblicas também me encantaram, recebi os sacramentos do catolicismo, assim cresci como brasileira raiz, entre o terreiro e o templo, um pé na igreja e outro na macumba.

Quando a estabilidade profissional e o advento de tantos concursos literários me convidaram a publicar meus escritos e ensaiar uma vida de escritora, aquele desejo de infância, adolescência e juventude que me fazia sonhar com prêmios, feiras de livros e palestras já havia esfriado, era apenas um desses ideais que semeamos na alma e que o transcurso do tempo esteriliza antes que germine.

Continuo a produzir meus escritos, não os mostro aos familiares, não os divulgo aos amigos. Hoje os vejo como expressão de uma terapia, quando os produzo esqueço as preocupações cotidianas, as angústias nossas de cada dia, as tristezas que somamos ao cabedal de sentimentos que carregamos no bojo do existir.

Escrever é também instrumento estético de reconciliação consigo, pois quando estou diante de uma folha em branco ou de uma tela de computador, sinto-me em confluência com uma dimensão tão cara àqueles que cultivam valores humanos, a liberdade.

A liberdade de criar personagens, narrativas, desfechos de narrativas, cujo fim sempre dependerá de mim, possui algo da vaidade de quem cria, mas também a responsabilidade criadora de quem sendo pai de um micromundo povoado de personagens, tudo isso é equacionado na multiplicidade de enredos que se pode dar vazão e na possibilidade de reelaborar fantasmas que nos habitam, na pele multiforme de tantos seres ficcionalmente concebidos.

Pretendo continuar a escrever meus fragmentos de diários íntimos que já somam muitos cadernos e o antigo sonho de bienais, feiras e palestras, cafés literários e lançamentos de obras ficará para ser realizada pelas tantas escritoras negras de hoje que inspiradas em Chimamanda Adichie, Conceição Evaristo e tantas outras primorosas mulheres de letras e resistência.

Quando compareço a um lançamento de livro de uma mulher, independente da etnia, penso nos séculos de opressão patriarcal, no quanto fomos privadas de visibilidade, penso em Auta de Souza e Esperança Garcia, mas também em Clara Schumann e Maruja Mallo, quando nelas penso, gênios criadores privados do reconhecimento em vida e pelos pósteros da grandiosidade de suas obras e legados, quando nelas penso, entre um cálice de sangiovese e um spiritual de Jessye Norman, as lágrimas me osculam as negras maçãs da face entristecida.

XVIII

Pétala da Abissínia

A primeira vez que fui associada a uma flor foi ainda em tensa idade, quando minha mãe me chamava de flor de lótus, demorei a descobrir que esta bela flor está associada à candura, quando a inocência da infância foi se despetalando com o conhecimento gradual da máquina do mundo, essa engrenagem entretecida de júbilo e espanto que envolvera o arco e a lira de Carlos Drummond de Andrade.

Quando as pétalas se desprenderam do pedúnculo do véu alabastrino das retinas de minha alma, uma segunda pessoa me chamara de “pétala de ébano”, aquele primeiro namorado que me deixou ao relento da desilusão em uma noite banhada de luar, em um banco no Largo do Amor, em frente à Igreja dos Remédios, aquele fatídico dia me fez roseira urdida em fogo e tempestade.

A terceira vez que fui florida pelo ramalhete poético de associação a uma planta, não me foi ofertado alguém exterior a mim, mas nasceu da musa interior que me habita a pele da alma. No jardim íntimo que abrigava no espírito, eu era sensível como a raríssima orquídea azul e resiliente como a rosa de Hiroshima do poema de Vinícius de Moraes.

Mas também era Palesa, mulher preta ludovicense que deixava seu torrão natal para pisar as cálidas areias do berço da humanidade, o ponteiro de meu relógio passava devagar e em meu coração saltitante de alegria e ansiedade, eu queria apressar o andamento do tempo,  de andante moderato do avião já célere em seu voo, meu ser inteiro clamava um alegricissimo, que fizesse aportar no Aeroporto Internacional de Addis Adeba, os pássaros de fogo de minha música de câmara pessoal, quinteto de balafon, xequerê, cuíca, agogô e gonguê, sob a regência de Dona Venina, do orum a reger erês com a batuta-palmeira, palha de dendezeiro.

Eu passaria um ano na Etiópia como assessora jurídica de uma ONG que desenvolve projetos relacionados à promoção e defesa dos direitos humanos, sediada em Addis Adeba, eu refletia sobre a dinastia salomônica e o grande Império Etíope, na Rainha de Sabá e na tribo dos falashas, judeus africanos e claro, como maranhense que apreciava o reggae jamaicano, eu também pensava em Haile Selassie, a divindade manifesta do rastafarianismo a quem muitas canções que eu apreciava faziam referências, banhava meus sonhos no Rio Nilo Azul e desbravava planaltos no dorso de elefantes alados, a magia me enovelava em sua capulana e ansiando por beijar o chão ancestre do chifre da África, minha imaginosa alma navegava entre a rica História daquele país e a força encantatória que emana das visões edênicas que perpassam o berçário da humanidade.

Eu singrava o imenso oceano atlântico, recordava os versos do Navio Negreiro de Castro Alves, poema épico que ensejara uma apresentação teatral na escola, nos tempos idos de meu ensino médio, aquele poema pujante marcou meu espírito, pois sempre que o recordo não rememoro com a força declamatória que subjaz sua eloquência lírica, mas com a potência de denúncia abolicionista e revolta interior pela grande tragédia do tráfico transatlântico de africanos escravizados, enquanto a mente entrelaça estas informações com as embiras do intelecto, meu coração revisitava versos do poema, Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus, / Se eu deliro... ou se é verdade / Tanto horror perante os céus?!... / Ó mar, por que não apagas / Co'a esponja de tuas vagas / Do teu manto este borrão? / Astros! noites! tempestades! / Rolai das imensidades! / Varrei os mares, tufão! ...

Eram meus ancestrais, corpos negros lançados ao sorvedouro do pélago, corpos de reis, príncipes e princesas, ferreiros e metalúrgicos, crianças e idosos, agricultores e babalaôs, guerreiros e griots, cujos cadáveres teriam mudado a rota de tubarões para banquetearem-se de seus despojos corporais esquálidos e enfermiços, ali, naquela poltrona solitária, eu chorei, enquanto o coração revisitava versos do poema, “Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! / Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano / Como o teu mergulhar no brigue voador! / Mas que vejo eu aí.... Que quadro d'amarguras! / É canto funeral! .... Que tétricas figuras! ... / Que cena infame e vil.... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!”

Argonauta de tez mourisca no xaveco flutuante, em busca do tosão de ouro de ofir da própria ancestralidade interditada em sua plenitude pelas muralhas de grilhões e tumbeiros que a diáspora ergue, eu carregava no útero do ser o Anil e o Bacanga entrelaçados e o tremedal do boqueirão na encantaria da gira íntima, nesse encontros das águas eu recordava das palavras de Tituba, que falara pela pena de Maryse Condé, “Pois, se a água das nascentes e dos rios atrai os espíritos, a do mar, em perpétuos movimentos, assusta-os. Eles se mantêm afastados de suas imensidões, às vezes mandam mensagens para aqueles que estimam, mas não atravessam, não ousam ficar sobre as ondas.”

 E eu interpelava a cabaça de segredos de Avievodum: Atravessarão estas águas como dantes atravessaram com meus antepassados, os voduns e caboclos que me acompanham ou terão ficado na encantaria de Barba Soeira, aguardando meu retorno?

Meu nome é Palesa, sou uma mulher preta, roseira urdida em fogo e tempestade, pétala da Abissínia e quando o véu azul do oceano infinito foi rasgado no tabernáculo de minhas retinas, eis que surge diante de meus olhos embriagados de felicidade a grande África de meus ancestrais, as lágrimas osculam minha face negra, sou um rebento da diáspora que volta ao útero materno, um sopro singelo me beija o ori e de forma discreta meu encantado me possui, eu beijaria o solo africano, mas antes meu patrão cantaria ao descer do avião, diante do sol que ilumina os etíopes e outrora iluminara os filhos do Rei Salomão. Meu nome é Palesa, pétala da Abissínia, revestida de ashé, roseira urdida em fogo e tempestade.

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Theotonio Fonseca
Sobre o blog/coluna
Theotonio Fonseca é professor, poeta, escritor, Bacharel em Direito e Pós-Graduando em Direito Tributário pela PUC/MG.
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