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A farda do 14º andar

A ilusão política como superstição moderna

Theotônio Fonseca
Por: Theotônio Fonseca
07/07/2025 às 19h37
A farda do 14º andar
Imagem produzida com IA

A FARSA DO 14º ANDAR

Theotonio Fonseca

            Em um célebre sermão baseado em Mateus 10:16, o Dr. Martin Luther King Jr. dissertava sobre a necessidade de uma mente rigorosa, que não se deixasse invadir por superstições. Em determinado trecho, relatava que, ao hospedar-se em um grande hotel de Nova York, notara a ausência do 13º andar — fato confirmado pelo ascensorista, que lhe disse ser essa prática comum entre os grandes hotéis, pois muitos hóspedes temiam se hospedar nesse piso.

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            O fecho da fala do ascensorista é lapidar: “A verdadeira tolice desse medo está no fato de o décimo quarto andar ser, na realidade, o décimo terceiro.” A superstição possui o condão de enredar à realidade a erva daninha do fantasmático — o sobrenatural que não pode ser medido, quantificado, testado ou observado. Um sobrenatural que tampouco se ancora em uma dimensão metafísica profunda. A superstição não é sofisticada: não repousa seus alicerces sobre sedimentos filosóficos ou espirituais autênticos. Antes, arrasta o imponderável do mágico para o mundo fenomênico com uma trivialidade absurda.

            O 13º andar continua ali, cristalinamente desvelado diante de olhos que enxergam, mas não veem. Embora travestido sob a falsa identidade de um 14º, continuará sendo o mesmo décimo terceiro. Uma mente politicamente rigorosa exige o reconhecimento de que realidade e magia não podem ocupar o mesmo estatuto topográfico de realismo prático. À exceção das narrativas de Gabriel García Márquez, não há realismo fantástico nos meandros do fazer político. Ainda que sonhemos com o reencantamento do mundo, esse sonho raramente é mediado pela beleza do reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Algo de podre ainda habita os reinos dinamarqueses das entranhas do poder.

            Por certo, existem mais coisas entre o céu da retórica e a terra do vil metal do que sonha a vã filosofia dos que tremulam as flâmulas multicores dos partidos. A política contemporânea, em grande parte, é sustentada por metanarrativas ruídas — estruturas discursivas totalizantes que prometiam sentido, redenção e ordem. O fracasso dessas metanarrativas, como diagnosticado por Jean-François Lyotard (1924–1998), resultou não no fim das ideologias, mas em sua reciclagem como simulacros. A ilusão do 14º andar é, portanto, metáfora da permanência inconsciente das velhas crenças, camufladas sob novas aparências, prometendo mundos que não existem, andares que jamais foram erguidos.

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            A utopia socialista, nesse contexto, tornou-se um 13º andar cerzido em sonhos que insistimos em sonhar. Partilhamos com alguns camaradas o mesmo elevador ideológico, mas o andar prometido não corresponde ao que de fato existe. Enquanto semeamos esperança no solo fantasmagórico de nossa Macondo pessoal, meia dúzia de pezzonovante vai erigindo silenciosamente seus projetos pessoais de poder, com os pés fincados não no sonho coletivo, mas nos alicerces blindados de seus privilégios.

            O 14º andar — esse patamar simbólico onde supostamente se realizariam os ideais mais nobres — não existe. É artifício narrativo para manter a massa em trânsito, em eterna espera pelo andar da redenção. Não haveria militância alienada se todos se habilitassem a protagonizar os próprios ideais, sem a mediação dos que insistem em apontar o céu artificial de um andar inexistente para a turba politicamente ignara, enquanto desfrutam, da cobertura, os deleites dos privilégios e os brindes de um paraíso exclusivo.

            Desvelar a farsa do 14º andar é, pois, mais do que desmascarar uma superstição arquitetônica. É recusar as ilusões vendidas pelas metanarrativas recicladas do presente. É edificar, ainda que no térreo da realidade nua e crua, uma caminhada própria — lúcida, crítica, emancipada.

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Theotonio Fonseca é professor, escritor e advogado. Foi membro consultivo da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MA, e atualmente compõe a Comissão de Advocacia Criminal da OAB/MA.

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