Entre tramas de linguagem barroca, incursões herméticas e visões místicas transfiguradas em verbo, “A Navalha do Ébrio na Carne do Copo” oferece uma experiência literária que escapa ao ordinário. Theotonio Fonseca costura, como quem invoca, uma tapeçaria de mitos, símbolos e paradoxos que fazem de seus contos muito mais que narrativas — são rituais literários.
Seus personagens, paisagens e objetos não estão presos às funções convencionais: uma boca de poço devora; um sapato é costurado com asas; um mioma sonha. As imagens ultrapassam o limiar do fantástico: mergulham na metafísica de um real encantado, de uma realidade que pulsa no invisível, onde o tempo é espiral e o verbo é cosmogênese.
A cabala, a gnose, a alquimia e os fundamentos da tradição africana dialogam em cada parágrafo. O alguidar primordial que engole a si mesmo é reflexo do Ouroboros. O menino-cobra, a santa de roca grávida, a abadessa menstruante, são arquétipos da transgressão que reinventa o sagrado a partir do profano. Aqui, o feminino e o marginal não pedem licença: fundam liturgias novas.
Fico feliz ao ler um autor que foge ao convencional. Um homem que apresenta sua alma, expõe sua face, acredita em sua verdade. Um escritor que assume, inclusive, o risco altíssimo de não ser compreendido pelo público. Não porque assim o queira, mas por estarmos diante de alguém que trabalha no limite da razão, resvalando nas bordas da loucura. De uma voz literária que se alimenta de fontes raríssimas de influência, simultaneamente múltiplas e incomuns. Elementos que valorizam ainda mais o modo pelo qual escolheu contar suas histórias. Na contramão dos modismos editoriais, voltados a uma visão meramente comercial e mercadológica da literatura.
Ao final dessa experiência de leitura, ninguém sai ileso. Há uma modificação interior. Há um encontro com o inominável dentro de tudo aquilo que julgamos conhecer. Somos levados a mergulhar em nossos estranhamentos. A viver num plano imaginário profundo, diverso e desconhecido para a maioria dos leitores.
A literatura de Fonseca funciona como espada e unguento. Em “Cozendo a Boca do Sapato Velho”, ele escreve: “a trama da costura foi urdindo espanto e estabilidade.” A narrativa refaz o caminho da redenção por meio do artesanato da linguagem ligada às ancestralidades.
“A Navalha do Ébrio na Carne do Copo” é obra de fôlego mítico, com imaginação teológica e execução estilística singular. É obra para ser lida com o corpo, para ser sonhada com os olhos, para ser orada em silêncio diante de um altar aceso com a chama das palavras.
Que o leitor se prepare, pois aqui a literatura volta a ser um ritual. E o copo — transbordante — ainda vibra.